A prática de anatocismo – cobrar juros sobre juros devidos – é considerada ilícita no Brasil. Contudo, embora esse tema esteja regulado por leis que datam do começo do século XX, ele ainda não é matéria pacificada no Direito Econômico e Financeiro.
No nível prático, o anatocismo é muitas vezes tido como sinônimo para “juros compostos”, ou ainda, para “capitalização de juros”. No entanto, há precedentes e jurisprudência para sustentar que poderíamos estar frente a conceitos distintos.
Assim, entender o que é anatocismo na legislação brasileira é a primeira missão deste artigo. Em segundo lugar, traremos algumas das principais decisões, acórdãos e súmulas sobre o tema.
Ao final, esperamos que você esteja melhor preparado(a) para enfrentar este complexo tema, na sua prática jurídica. Boa leitura!
Anatocismo é um termo próprio do Direito para definir a cobrança de juros sobre juros devidos, em uma situação de inadimplência. Essa conduta é vetada pela lei brasileira e, portanto, é prática ilícita.
Contudo, empiricamente, entender quando ocorre o anatocismo é mais complexo. Isso porque, muito frequentemente, ele pode se confundir com a aplicação de juros compostos – que, na maioria das vezes, não é por si só considerada crime.
Vejamos como funciona o anatocismo, na prática. Para isso, imagine que você contraiu uma dívida, sobre a qual incidem juros de 2% ao mês. Se, ao deixar de pagar uma parcela (inadimplência), passarem a incidir juros não apenas sobre o valor original da dívida, mas também sobre os juros já acumulados, tem-se o anatocismo.
O exemplo acima é uma situação clássica em que o crime de anatocismo poderia ser caracterizado. Entretanto, os códigos legais brasileiros estabelecem uma série de exceções que acabam por descaracterizar o anatocismo, a depender de como se dá a capitalização de juros (anual, semestral, mensal, etc), ou ainda das partes dela participantes.
Nas palavras do jurista Marcelo Almeida de Moraes Marinho, na obra “Juros – Aspectos Econômicos e Jurídicos”:
“Pode-se afirmar que, nos mais diversos assuntos, podemos encontrar leis e interpretações proibindo, permitindo ou limitando a capitalização de juros. E nesse mar revolto de ideias e princípios é que navega o julgador.”
Uma vez que se trata de tema complexo e não-pacificado, antes de entender mais sobre os aspectos jurídicos do anatocismo, veremos qual a definição de juros simples e compostos.
E, a fim de introduzir os principais conflitos de interpretação hoje vigentes, nos deteremos ainda na possibilidade de distinção – ou não – entre juros compostos e anatocismo.
Juros simples e juros compostos são conceitos de economia, bastante comuns para quem atua nessa área. Já o anatocismo é o termo jurídico utilizado para designar uma prática financeira ilícita.
Vejamos, então, o que são juros simples, juros compostos, e como estes últimos se diferenciam do anatocismo.
Os juros simples são um percentual pré-determinado que incide apenas sobre o valor original de uma dívida. Ao contrair uma dívida de R$10 mil, com juros de 2%, a incidência da taxa será sempre sobre o valor de R$10 mil.
Por esse motivo, os juros simples são mais regulares do que os juros compostos.
Nos juros compostos, a incidência da taxa ocorre sobre o valor da dívida original, acrescido do valor dos juros. Em uma dívida composta de R$10.000,00, com juros anuais de 2%, no primeiro ano sua dívida seria de R$10.200,00.
Já no segundo ano, a taxa de juros seria aplicada sobre o valor original da dívida somado ao valor dos juros já acumulados. Assim, os 2% seriam calculados sobre o valor de R$10.200,00, e não sobre os R$10.000.
Efetivamente, no Brasil, não há doutrina pacífica para a questão da diferença entre juros compostos e anatocismo. Por um lado, há juristas que se detém na letra da lei para afirmar que, ali, a capitalização de juros compostos é tratada como sinônimo de anatocismo.
Por outro lado, as cortes superiores parecem caminhar, nos anos recentes, para um entendimento de que os juros compostos são aplicados sobre juros a vencer, enquanto no anatocismo essa aplicação se dá sobre juros já vencidos (inadimplidos).
Portanto, estaríamos frente a frente com dois conceitos distintos. Nesse sentido, a decisão do TRF-4, na Apelação Cível 5001337-74.2017.4.04.7216/SC, corrobora para o entendimento de que há distinção. Ali, se lê:
[…] o que a lei veda é a cobrança de juros sobre capital renovado, ou seja, sobre o montante de juros não pagos, já resultantes da incidência de juros compostos (capitalizados). Ter-se-ia, aí sim, a cobrança de juros sobre juros, prática de anatocismo […]
Outro exemplo de jurisprudência nesse mesmo sentido vem do julgamento da Apelação Cível 5038310-36.2013.4.04.7000/PR, cuja análise de caso concreto conclui o que segue:
[…]Embora a CEF, reiteradamente, argumente que não ocorre cobrança de juros sobre juros no caso de crédito rotativo – sob o fundamento de que seria apenas cobrança e pagamento dos juros lançados a débito na conta, que, por não terem sido quitados, passam a compor o saldo devedor da conta -, o que costuma acontecer é a incidência mensal sobre o saldo devedor de novos juros, ou seja, os juros são somados ao saldo devedor, e sobre o resultado calculam-se novos juros. Tal situação evidencia o anatocismo, que deve ser afastado.[…]
Os fundamentos legais e as penalizações que incidem sobre o crime de anatocismo estão espalhadas por uma série de códigos.
Aqui, destacamos apenas os diplomas legais mais significativos.
A Lei da Usura (Decreto 22.626/33) é uma das bases legais mais comumente citadas para definir o que é o anatocismo. Em seu Art. 4º, lê-se:
Art. 4º. É proibido contar juros dos juros: esta proibição não compreende a acumulação de juros vencidos aos saldos líquidos em conta corrente de ano a ano.
Como se vê, a Lei da Usura estabelece a periodicidade anual para acumulação de juros. Contudo, importa destacar que o Art. 5º da Medida Provisória (MP) 2.170-36/2001 provocou alteração nesse prazo, permitindo que seja contabilizado mensalmente. In verbis:
Art. 5o Nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, é admissível a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano.
No meio jurídico, a edição da MP 2.170-36/2001 foi alvo de contestação. Em 2015, no entanto, o STF julgou recurso extraordinário de repercussão geral que discutiu a constitucionalidade ou não do Art.5º da MP. E decidiu, ao fim e ao cabo, que a determinação é constitucional.
No acórdão que pactuou a decisão pela constitucionalidade da MP, lemos:
“1. A capitalização de juros vedada pelo Decreto 22.626/1933 (Lei de Usura) em intervalo inferior a um ano é permitida pela Medida Provisória 2.170-36/2001, desde que expressamente pactuada, tendo por pressuposto a circunstância de os juros devidos e já vencidos serem, periodicamente, incorporados ao valor principal. Os juros não pagos são incorporados ao capital e sobre eles passam a incidir novos juros. 2. Por outro lado, há os conceitos abstratos, de matemática financeira, de “taxa de juros simples e taxa de juros compostos”, métodos usados na formação da taxa de juros contratada, prévios ao início do cumprimento do contrato. A mera circunstância de estar pactuada taxa efetiva e taxa normal de juros não implica capitalização de juros, mas apenas processo de formação da taxa de juros pelo método composto, o que não é proibido pelo Decreto 22.626/1933.”
Assim, o Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento de que, havendo pactuação expressa entre as partes, é possível a capitalização de juros em período inferior a um ano, a despeito do que estabelece a Lei da Usura.
Ao longo deste artigo, discutiremos em mais detalhes alguns das principais súmulas que concretizam o entendimento das cortes brasileiras acerca da Lei da Usura e da MP 2.170-36/2001. Fique conosco!
O Código Civil de 1916 não vedava a cobrança de juros sobre juros, conforme se estipulava no Art. 1262. No entanto, com a Lei da Usura, já a partir de 1933, se estabeleceu a vedação ao anatocismo, ficando permitida apenas a capitalização anual.
Por sua vez, o novo texto do CC, datado de 2002, incluiu redação que vai ao encontro do que determina a Lei da Usura. Na letra da Lei, o Código Civil passa a abordar o tema da seguinte maneira:
Art. 591. Destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual.
Em complemento a esse artigo, o Informativo de Jurisprudência nº 599 do STJ, datado de 2017, reafirma que “a cobrança de juros capitalizados nos contratos de mútuo é permitida quando houver expressa pactuação”.
Desde o princípio deste artigo, você viu trechos de decisões e acórdãos que ajudam a consolidar quando ocorre o anatocismo. Além desses exemplos de jurisprudência, há também certos entendimentos já sumulados, acerca desse crime e de sua fundamentação legal.
As súmulas são, em última análise, a materialização de uma jurisprudência consolidada pelo Tribunal. Tendo isso em mente, trazemos, abaixo, três das súmulas mais importantes quando o assunto é anatocismo. Confira!
A Súmula 121 foi publicada em dezembro de 1963. Ela se refere diretamente à Lei da Usura que, por sua vez, foi publicada 30 anos antes, em 1933. Na súmula 121 encontra-se o seguinte enunciado:
“É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada.”
Pela redação do enunciado, a Súmula 121 acabou por contribuir para interpretações dissonantes do conceito de anatocismo. Isso ocorre porque o texto parece indicar que juros compostos (capitalização de juros) e anatocismo designam o mesmo fenômeno.
Contudo, como vimos, o entendimento predominante atualmente vai no sentido de que toda a prática de anatocismo inclui juros compostos, embora nem toda a aplicação de juros compostos configure anatocismo.
Além disso, na Súmula 121, o site oficial do STF orienta o leitor a buscar também a Súmula 596, do mesmo órgão. Ali, como veremos a seguir, se encontra uma das exceções ao anatocismo.
Publicada em 1976, a Súmula 596 acaba por complementar o que traz a MP 2.170-36/01. Isso porque, em seu anunciado, lê-se:
“As disposições do Decreto 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional.”
Assim, fica estabelecido que a vedação à prática de anatocismo não se aplica às instituições que integram o Sistema Financeiro Nacional (expressas na Lei 4.595/64) – como o Banco Central e outras instituições financeiras públicas e privadas.
No mesmo sentido caminha a Súmula 93, do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Publicada em 1992, a súmula traz o seguinte enunciado:
A legislação sobre cédulas de crédito rural, comercial e industrial admite o pacto de capitalização de juros.
Assim, tem-se consolidado mais um tipo de caso que admite exceção à aplicação do anatocismo: as cédulas de crédito rural, comercial ou industrial.
O Código de Defesa do Consumidor é o diploma que apoia o cidadão na busca por reaver quantias que foram pagas indevidamente, em virtude do anatocismo.
Para tal, o prejudicado deve propor ação revisional. Se comprovada a prática de anatocismo, o réu pode ser condenado a devolver ao consumidor os valores pagos indevidamente. A essa devolução se dá o nome de repetição do indébito.
O anatocismo é definido, pela Lei da Usura (Decreto 22.626/33), como a cobrança de juros sobre juros já vencidos. O anatocismo se assemelha, em grande medida, ao conceito matemático de juros compostos. No entanto, o anatocismo se materializa quando a cobrança de juros se dá sobre juros inadimplidos. No Brasil, a prática é considerada ilícita.
Conceitualmente, a Lei da Usura (Decreto 22.626/33) traz que é proibido contar juros dos juros. Portanto, a cobrança de juros dos juros é prática ilícita. No entanto, essa lei determina também que a proibição não compreende a acumulação de juros vencidos aos saldos líquidos em conta corrente de ano a ano
Na Lei da Usura (Decreto 22.626/33), no Código Civil e na Súmula 121 do STF, os termos “anatocismo” e “capitalização de juros” são tratados como sinônimos. No entanto, conceitualmente, a jurisprudência recente caminha na direção de estabelecer diferenciação entre um conceito e outro.
Como você viu, o conceito de anatocismo no sistema de justiça brasileiro não é matéria pacífica, tendo sido discutido em recursos extraordinários e especiais. Bem como, tendo sido também alvo de súmulas no STF e STJ.
Assim, entende-se que a atuação jurídica em questões que envolvam anatocismo ou capitalização de juros devem ser acompanhadas do exame atento da jurisprudência existente, assim como, dos códigos, decretos e MPs que ajudam a fundamentar o que vem a ser o anatocismo. Bom trabalho!
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