O Direito agrário tem surpreendido mais pelos seus efeitos do que pelas suas causas. Explico o porquê. Nos temas em discussão nos Tribunais Superiores, então, mais se discute as consequências jurídicas da atividade agrária e os seus impactos na sociedade num viés restritivo. Assim, resta negligenciada a discussão acerca das causas e do sentido dos institutos jurídicos agrários, assim como seus impactos na sociedade atual.
Um dos mais “recentes” debates envolvendo a matéria agrária, desse modo, foi a discussão acerca do arrendamento rural. No REsp 1447.082, o conflito veio, então, à tona no que se refere a controvérsia acerca do direito de preferência por arrendatário que é empresa rural de grande porte.
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Controvérsia do arrendamento rural
Vejamos então a ementa do recurso pertinente à discussão da atividade agrária:
RECURSOS ESPECIAIS. CIVIL. DIREITO AGRÁRIO. LOCAÇÃO DE PASTAGEM. CARACTERIZAÇÃO COMO ARRENDAMENTO RURAL. INVERSÃO DO JULGADO. ÓBICE DAS SÚMULAS 5 E 7/STJ. ALIENAÇÃO DO IMÓVEL A TERCEIROS. DIREITO DE PREFERÊNCIA. APLICAÇÃO DO ESTATUTO DA TERRA EM FAVOR DE EMPRESA RURAL DE GRANDE PORTE. DESCABIMENTO. LIMITAÇÃO PREVISTA NO ART. 38 DO DECRETO 59.566/66. HARMONIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E DA JUSTIÇA SOCIAL. SOBRELEVO DO PRINCÍPIO DA JUSTIÇA SOCIAL NO MICROSSISTEMA NORMATIVO DO ESTATUTO DA TERRA. APLICABILIDADE DAS NORMAS PROTETIVAS EXCLUSIVAMENTE AO HOMEM DO CAMPO. INAPLICABILIDADE A GRANDES EMPRESAS RURAIS. INEXISTÊNCIA DE PACTO DE PREFERÊNCIA. DIREITO DE PREFERÊNCIA INEXISTENTE.
- Controvérsia acerca do exercício do direito de preferência por arrendatário que é empresa rural de grande porte.
- Interpretação do direito de preferência em sintonia com os princípios que estruturam o microssistema normativo do Estatuto da Terra, especialmente os princípios da função social da propriedade e da justiça social.
- Proeminência do princípio da justiça social no microssistema normativo do Estatuto da Terra.
- Plena eficácia do enunciado normativo do art. 38 do Decreto 59.566/66, que restringiu a aplicabilidade das normas protetivas do Estatuto da Terra exclusivamente a quem explore a terra pessoal e diretamente, como típico homem do campo.
- Inaplicabilidade das normas protetivas do Estatuto da Terra à grande empresa rural.
- Previsão expressa no contrato de que o locatário/arrendatário desocuparia o imóvel no prazo de 30 dias em caso de alienação.
- Prevalência do princípio da autonomia privada, concretizada em seu consectário lógico consistente na força obrigatória dos contratos (“pacta sunt servanda”).
- Improcedência do pedido de preferência, na espécie.
- RECURSOS ESPECIAIS PROVIDOS.
(STJ, 3ª Turma, REsp 1447082/TO, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 10/05/2016, publicado em 13/05/2016)
Inaplicabilidade do Estatuto da Terra
O julgado salienta bem a Inaplicabilidade do Estatuto da Terra à grande empresa rural. Para entender o teor do conflito, contudo, é preciso analisar o conteúdo do conceito de arrendamento rural. Conforme o art. 3º do Decreto nº 59.566/66:
Art. 3º Arrendamento rural é o contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de imóvel rural, parte ou partes do mesmo, incluindo, ou não, outros bens, benfeitorias e ou facilidades, com o objetivo de nele ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agro-industrial, extrativa ou mista, mediante, certa retribuição ou aluguel, observados os limites percentuais da Lei.
Nota-se que o objetivo crucial do arrendamento rural, portanto, é a exploração de atividade agrária. Desse modo, ao afastar a empresa rural da seara do Estatuto da Terra e aplicar as normas civilistas, é delimitar por outro ângulo que a grande empresa, por exclusão, não exerce atividade agrária e sim atividade comercial.
O que em outras palavras o STJ imprime é que um dos escopos do Estatuto da Terra é a proteção social, que visa proteger o pequeno produtor ou a empresa familiar como direito preferencial à exploração por não competir em igualdade de condições com a grande empresa rural.
O que é atividade agrária
É importante para o direito agrário estabelecer o que é atividade agrária para se identificar quando esta incide e assim estabelecer as possíveis consequências jurídicas.1 Como a lei não define especificadamente o que seja atividade agrária, Carroza estabeleceu um parâmetro para o que seria atividade agrária ao se criar a “teoria da agrariedade”.
Para Carroza, a atividade agrária pelo seu próprio desenvolvimento biológico de produção, todavia, não é suficiente para se estabelecer como agrária. Deixa de considerar, desse modo, os riscos suportados pelos eventos da natureza, os quais não são controlados pelos seres humanos [2]. Ou seja, aquele que assume os riscos naturais que afetam o ciclo natural de produção, explora atividade econômica.
Nesta concepção, então, a grande empresa que se coloca como produtor direto, explorando e arcando com os riscos decorrentes da atividade e do ciclo de produção, também pode ser parte legítima no contrato de arrendamento rural.
A atividade agrária, pois, decorreria de um processo natural evolutivo, orgânico, do ciclo biológico sujeito a risco. Eliminado o risco e afastado o processo biológico natural pelo recurso à química ou à física inorgânica desapareceria o caráter de agrariedade da atividade.
Parâmetros legais da atividade agrária
A dificuldade imposta e a incógnita provocada pela falta de parâmetro legal dos institutos jurídicos agrários, no entanto, colocam em cheque sua própria eficácia no mundo jurídico. Não é à toa, afinal, que se discute a validade e aplicabilidade do Estatuto da Terra no Direito Agrário.
A atividade agrária demanda análise quanto as atividades conexas às desenvolvidas em um ciclo biológico [3]. O Código Civil Italiano, influenciado pela teoria de Carroza, expandiu o simples conceito de atividade agrária a partir do desenvolvimento do ciclo biológico, considerando que uma mesma pessoa ou empresário que exerce atividade agrária é aquele que participa em todo o processo de “conservação, transformação, comercialização e valorização” do produto agrário obtido [4]
“O Acórdão 8.128, de 22 de abril de 2016, da Corte de Cassação Italiana[5], reacende exatamente a discussão sobre o conceito de atividade agrária, mais precisamente a extensão e os requisitos para considerar uma atividade conexa. Trata-se de um recurso proposto pela Agenzia de Entratecontra o empresário agrário B.E. A fiscalização, em visitas em 2004, constatou que o titular da empresa exercia atividade de panificação. O titular da empresa, B.E, alegou que se tratava de uma atividade conexa de mera transformação e, por isso, era incluída nos rendimentos como atividade agrária, de acordo com o artigo 2.135 do Código Italiano. Observa-se que a atividade de panificação exercida pelo empresário B.E se enquadrava nos critérios subjetivos e objetivos, utilizava produtos cultivados na sua empresa e era realizada pelo próprio empresário.” (ALABRESE. TRENTINI (2017).
No caso em tela, tratando especificamente do direito de preferência, o STJ julgou considerando o princípio da justiça social como o pilar da limitação da atividade agrária. Para fins do exercício do direito de preferência no arrendamento rural, considerar-se-á tão somente o sujeito da relação jurídica e tão menos o objeto da atividade explorada.
Art. 92. A posse ou uso temporário da terra serão exercidos em virtude de contrato expresso ou tácito, estabelecido entre o proprietário e os que nela exercem atividade agrícola ou pecuária, sob forma de arrendamento rural, de parceria agrícola, pecuária, agro-industrial e extrativa, nos termos desta Lei. […]
§ 3º No caso de alienação do imóvel arrendado, o arrendatário terá preferência para adquiri-lo em igualdade de condições, devendo o proprietário dar-lhe conhecimento da venda, a fim de que possa exercitar o direito de perempção dentro de trinta dias, a contar da notificação judicial ou comprovadamente efetuada, mediante recibo.
Dada a dinamicidade do Direito Agrário, é deveras limitante analisar a relação jurídica agrária somente pela ótica do seu sujeito. A crítica consistente aqui é que o exercício do direito de preferência baseada numa proteção social conferida ao “típico homem do campo” se contradiz pela própria capacidade econômica deste de investir e manter a atividade explorada.
Desta forma, para TRENTINI (2017), seguindo os conceitos de Carroza, para fins de empresário ou empresa rural, não se considera apenas o “típico homem do campo” ou mesmo a empresa familiar prevista no art. 4º do Estatuto da Terra. Assemelham-se os conceitos dos institutos de empresa rural e empresa comercial, definida pelo STJ no tocante às empresas de grande porte. Avalia-se para caracterizar atividade agrária o modo como se organiza e a economia no processo produtivo, de modo a caracterizar a típica atividade agrária.
Leia também:
Referências
- ALABRESE, Mariagrazia. TRENTINI, Flavia. Definição jurídica de atividade agrária: uma árdua tarefa. Direito do Agronegócio. Revista Consultor Jurídico. Março, 2017.
- DE-MATTIA, Fabio Maria. Atividade Agrária. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, dezembro, 1999.
- ROCHA, Olavo Acyr de Lima. Atividade Agrária conceito clássico. Conceito moderno de Antonio Carrozza. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, Janeiro, 1999.
- BARROSO, Lucas Abreu. REZEK, Gustavo Elias Kallás. O Código Civil e o Direito Agrário.
- NETO, Manoel Martins Parreira. A empresa agrária à deriva. Migalhas. Março, 2019.
- STJ Relembra casos de arrendamento rural julgados pela corte. Revista Consultor Jurídico. Setembro, 2018.
Ingrid Tayse de Siqueira. Advogada no escritório Brasil e Silveira Advogados. Associada e coordenadora do núcleo de direito agrário do Instituto de Estudos Avançados em Direito. Mestranda em direito agrário pela Universidade Federal de Goiás. E-mail: [email protected]. Instagram: @ingriderafaelps.
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