Por imposição constitucional, a atual conjuntura do Estado brasileiro exige que esse desempenhe em seu nome próprio várias atividades nos mais variados campos, como por exemplo a saúde, a segurança e a educação. Tendo em vista a diversidade das atribuições inerentes a cada cargo público, existem cargos que podem ser exercidos por qualquer cidadão com um mínimo de escolaridade; já outros cargos exigem formação profissional em determinadas áreas específicas; ou ainda há cargos que pressupõe uma aptidão física do servidor para o adequado exercício das atribuições de seu mister. Enfim, com o intuito de selecionar os cidadãos mais aptos para o exercício das atribuições de um determinado cargo, é necessário que se criem requisitos específicos de ingresso para esse cargo.
No entanto, a criação desses requisitos não é dado à Administração Pública em sentido estrito (leia-se Poder Executivo), muito embora seja ela a contratante efetiva do servidor. A Constituição Federal outorgou a definição desses requisitos ao Legislador, através das disposições dos arts. 37, inciso I e 39, §3º, in verbis:
Art. 37. (…)
I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei; (grifo nosso)
Art. 39. (…)
§3º Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir. (grifo nosso)
Ambos os dispositivos consagram o princípio da reserva legal, cujo conteúdo, nas palavras de José Afonso da Silva “consiste em estatuir que a regulamentação de determinadas matérias há de fazer-se necessariamente por lei formal”. Afirma ainda que “quando a Constituição reserva conteúdo específico, caso a caso, à lei, encontramo-nos diante do princípio da reserva legal”.[1]
Mais à frente, o ilustre professor Constitucionalista, ao tratar das categorias da reserva de lei, destaca a reserva legal do ponto de vista do vínculo imposto ao legislador, podendo ser absoluta ou relativa. Em suas palavras:
“É absoluta a reserva constitucional de lei quando a disciplina da matéria é reservada pela Constituição à lei, com exclusão, portanto, de qualquer outra fonte infralegal, o que ocorre quando ela emprega fórmulas como: ‘a lei regulará’, ‘a lei disporá’, ‘a lei complementar organizará’, ‘a lei criará’, ‘a lei poderá definir’ etc.
É relativa a reserva constitucional de lei quando a disciplina da matéria é em parte admissível a outra fonte diversa da lei, sob a condição de que esta indique as bases em que aquela deva produzir-se validamente. Assim é quando a Constituição emprega fórmulas como as seguintes: ‘nos termos da lei’, ‘no prazo da lei’, ‘na forma da lei’, ‘com base na lei’, ‘nos limites da lei’, ‘segundo critérios da lei’.”[2]
Os ensinamentos acima transcritos evidenciam ainda mais o que já não era de difícil visualização: a reserva legal para criação de requisitos de ingresso em cargo público é absoluta.
Com isso, apenas a lei formal submetida ao devido processo legislativo poderá criar ou enumerar requisitos de ingresso no cargo. Pelo raciocínio contrário, não se admite que atos normativos de qualquer natureza invadam a competência exclusiva da lei, sejam Editais de concurso, sejam Decretos, Resoluções, Portarias ou qualquer outra espécie de ato, para criar requisitos de ingresso em cargos públicos.
A jurisprudência dos tribunais nacionais, notadamente o Supremo Tribunal Federal, já de longa data afirmam veementemente que requisitos para ingresso em cargo público definidos apenas em Edital violam o art. 37, I da Carta Magna. Os exemplos mais constantes são os limites mínimo e máximo de idade para ingresso em cargo e também os testes psicotécnicos de caráter eliminatório não previstos em lei. Basta uma rápida pesquisa para encontrar diversos julgados sobre o tema.
Entretanto, existem duas leis do Estado de Goiás que trouxeram novidade relevante à discussão. São as leis 11.416/91 (Estatuto dos Bombeiros Militares do Corpo de Bombeiros Militares do Estado de Goiás) e 15.704/06 (Institui o Plano de Carreira de Praças da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Goiás).
A novidade anunciada é que as mencionadas leis expressamente autorizaram que os Editais dos certames públicos criem novos requisitos para ingresso no cargo. Com relação à primeira lei, a 11.416/91, o §1º do art. 11 diz o seguinte:
§1º No ato da matrícula no Curso de Formação de Oficiais – Quadro de Oficiais do Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Goiás, além do atendimento das condições estabelecidas por este Estatuto e pelo respectivo edital, o candidato deverá: (grifo nosso)
Já a lei 15.704/06 traz em seu art. 2º, §2º a seguinte disposição:
§2º Além de outros contidos no Edital, são requisitos exigidos para a inscrição ao concurso: (grifo nosso)
Com base nas autorizações legislativas acima transcritas, nos últimos concursos realizados pelo Estado de Goiás para prover cargos de Praças do Corpo de Bombeiros Militar, foi colocado nos Editais como requisito de ingresso no cargo, sem que houvesse previsão legal, a exigência de que o candidato fosse portador de Carteira Nacional de Habilitação tipo “C”. Houve, portanto, inovação no âmbito do ato administrativo.
Determinado candidato aprovado e impedido de tomar posse em razão dessa específica disposição editalícia acima mencionada ajuizou ação judicial pretendendo a declaração de sua nulidade. O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, no entanto, referendou o ato administrativo afastando a alegação de ilegalidade do requisito impugnado e prestigiando o denominado princípio da vinculação ao edital[3]. Disse, pois, que se as leis autorizavam (delegavam) aos Editais a imposição de requisitos complementares, não haveria qualquer ilegalidade no caso.
Com a devida vênia, os dispositivos legais estaduais são, sem a menor sombra de dúvidas, inconstitucionais por delegar ao edital competência dada pela Constituição Federal ao Legislador e apenas a ele. O princípio da reserva legal enunciado no art. 37, I e art. 39, §3º, ambos da Lei Maior foram gravemente violados, pois criou-se um requisito para ingresso em cargo público por meio outro que não a lei formal, esse sim o meio adequado definido pelos dispositivos constitucionais para tal fim.
Não bastasse isso, com esse verdadeiro “cheque em branco” outorgado pelo Legislador à autoridade responsável pela confecção do Edital, cria-se uma situação de insegurança jurídica insustentável: os candidatos jamais saberão, com a certeza necessária, quais habilidades são necessárias para as atribuições daquele cargo.
Ainda que se considere que no caso concreto analisado – Carteira Nacional de Habilitação tipo “C” como exigência para ingresso no cargo de Praça do Corpo de Bombeiros Militar – o requisito atendeu à razoabilidade e as peculiaridades do cargo, não se pode passar por cima da exigência formal para estabelecimento do requisito, qual seja a lei. A questão não é essa, mas sim que no próximo concurso o Edital pode passar a exigir Carteira Nacional de Habilitação tipo “D” (ou qualquer outro requisito que se possa imaginar), pegando de surpresa centenas, quiçá milhares de candidatos que ficarão de fora da disputa por impossibilidade absoluta de atender tal requisito a tempo.
A reserva legal dos arts. 37, I e 39, §3º da Constituição são absolutos, de forma que não só são ilegais/inconstitucionais os requisitos não previstos em lei e exigidos por qualquer espécie de ato normativo, como também é inconstitucional a lei formal que não se desincumba do seu mister e, violando a reserva legal, delegue a qualquer outra espécie de ato normativo a criação de requisitos para ingresso no cargo.
Artigo desenvolvido por Eurípedes José de Souza Junior, advogado, pós graduado em Direito Processual Civil (UNIDERP-LFG), pós graduado em Direito Constitucional (IDP), coordenador do Núcleo de Direito Constitucional do Instituto de Estudos Avançados em Direito (IEAD).
[1] In Curso de Direito Constitucional Positivo, 34ª edição, 2011, Editora Malheiros, p. 423.
[2] Ob. Cit., p. 424-425.
[3] TJGO, APELACAO CIVEL 511975-94.2011.8.09.0051, Rel. DES. CARLOS ALBERTO FRANCA, 2A CAMARA CIVEL, julgado em 13/05/2014, DJe 1546 de 21/05/2014.