Em entrevista, Daniel Arbix, diretor jurídico do Google fala sobre as potencialidades da resolução de conflitos online e sobre a transformação do direito na era digital.
Não é de hoje que o uso da tecnologia desperta o interesse (e o medo!) em alguns entusiastas do assunto e no universo jurídico, não é diferente. Com o ritmo acelerado em que as coisas acontecem e a crescente necessidade de nos tornarmos multitarefas para darmos conta de volumes cada vez maiores, trazer a tecnologia para dentro de nossas empresas e escritórios é cada vez mais fundamental.
E para tratar este assunto mais amplamente, Daniel Arbix, diretor jurídico do Google, doutor pela USP e mestre em Law, Science & Technology pela Stanford, chegou a lançar, inclusive, um livro “Resolução Online de Controvérsias”. Em entrevista exclusiva à Justto, ele traz algumas considerações interessantes acerca da resolução de conflitos na Era Digital.
1. Daniel, por que você se interessou sobre o assunto de resolução online de controvérsias?
Resposta: Sempre fui apaixonado pela internet e por discussões sobre seu futuro. Ao fazer compras online, participar de redes sociais ou sonhar com democracia participativa, ainda nos anos 2000, comecei a me perguntar como o direito seria transformado e como seriam os tribunais do futuro. Tive diálogos sobre esse tema vibrante com juristas, cientistas políticos e economistas e cada aprendizado (sobre estornos de cartão de crédito ou sobre a mediação então semi-automatizada do Mercado Livre, por exemplo) me deixava mais instigado. Ao estudar no Vale do Silício e conversar com empresas, empreendedores e investidores que apostavam alto em tecnologias de resolução de controvérsias, o tema me arrebatou de vez.
2. Como você acha que a resolução online de controvérsias provocará mudanças no direito?
Resposta: Como muitos dos conflitos online são novos e as tecnologias de resolução podem ser aplicadas a conflitos offline, a resolução online de controvérsias é entusiasmante em duas frentes: ela carrega um potencial de acesso à justiça sem precedentes e é essencial para inúmeras relações humanas que são atualmente mediadas por tecnologias de informação e comunicação. Os desenvolvedores dessas ferramentas, portanto, precisam estar atentos não somente a questões de eficiência, mas também de justiça procedimental e de resultados – lidando adequadamente, por exemplo, com assimetrias de informação, deveres de transparência e outras formas de dissolver conflitos de interesse. Isso se aplica ao design dos mecanismos de resolução de controvérsias e às regras de decisão que impõem; definições sobre, por exemplo, qual parte deve apresentar quais informações (ônus da prova) e o que as partes podem comunicar umas às outras permitem que as tecnologias de resolução de disputas condicionem a experiência das partes e limitem os resultados possíveis decorrentes de sua interação. Esse controle sobre as possibilidades dadas às partes em conflito e sobre as regras do jogo é crucial para o sucesso da resolução de disputas.
3. Você acha que o emprego de conceitos de usabilidade (UX) e técnicas de persuasão podem impactar o resultado da negociação?
Resposta: Sem dúvida alguma a persuasão tecnológica pode influenciar o resultado da negociação, bem como da mediação, da arbitragem, de júris populares e de técnicas híbridas de resolução de conflitos. Essa persuasão é crucial para acalmar as partes e criar um ambiente cooperativo: muitas ferramentas de resolução online de conflitos abrem espaços controlados para as pessoas desabafarem e ventilarem suas preocupações, ao mesmo tempo em que garantem que as respostas e propostas, entre outras comunicações enviadas à(s) outra(s) parte(s), sejam pautadas por respeito e polidez. A experiência dos usuários pode, inclusive e intencionalmente, voltar-se a induzir as pessoas na direção adequada com relação à busca e à compreensão de informações corretas e ao descarte de heurísticas e vieses que confundem o raciocínio humano (deficiências cognitivas partilhadas por todos nós). São justamente estas características que diferenciam a resolução online de disputas (também conhecida como ODR, sigla para a expressão inglês Online Dispute Resolution) das formas tradicionais de dirimir conflitos.
4. Você acha que a resolução online de conflitos é indicada apenas para instituições com grande volume de demandas ou acredita que o benefício pode ser colhido por instituições que possuam menores volumes de conflitos?
Resposta: Quanto mais aprimoradas as tecnologias, mais universais elas serão. Isso significa que as partes que lidam com muitos conflitos que hoje se tornam processos judiciais (como empresas de telecomunicações, do setor financeiro ou de aviação civil) estão na dianteira, por terem acesso aos dados brutos sobre múltiplas controvérsias. Se souberem analisar esses dados, identificar padrões, moldar comunicações e, sobretudo, ajustar suas práticas e políticas, estas empresas podem economizar, melhorar seus produtos e serviços e reconquistar seus consumidores. Conflitos que possuem feições semelhantes, embora envolvam partes diferentes, também são terreno fértil para experimentação com a resolução online: de cobranças (Money Claim Online no Reino Unido) a divórcios (Uitelkaar na Holanda, wevorce nos EUA), os exemplos vêm se multiplicando.
5. Na sua opinião, a adoção em massa de ferramentas de resolução online de controvérsias pode implicar um aumento considerável das demandas, ou seja, um efeito reverso?
Resposta: As demandas represadas pelos custos do acesso à justiça podem representar um ônus emocional para as partes e reforçar injustiças que muitas vezes atingem as pessoas menos favorecidas da sociedade. Quando as relações entre as partes são pontuadas por problemas, ainda que pequenos, esses atritos podem se acumular ao longo do tempo e resultar em perda de confiança – seja aquela depositada em pessoas, seja em marcas. Por isso mesmo os ganhos sociais de lidarmos de maneira mais inteligente com os conflitos podem ser muito expressivos, em termos econômicos, emocionais e culturais.
Sou bastante otimista com relação às tecnologias de resolução de controvérsias, mesmo sabendo que elas podem ser utilizadas de forma oportunista ou, se mal projetadas, gestarem uma sensação de que há muito mais conflitos do que se esperava, ou de que os procedimentos ou os resultados não foram justos. Em ambos os casos, que desafiam também as instituições tradicionais de solução de conflitos, ajustes constantes serão necessários, assim como transparência e responsabilidade do lado dos desenvolvedores e ofertantes destas tecnologias. No campo especulativo, eu acrescentaria que os mecanismos de ODR muito exitosos podem ter que pagar um alto preço por seu sucesso, que é se tornarem desnecessários: em primeiro lugar, determinados conflitos podem deixar de existir, porque sua origem foi bem identificada e a causa raiz foi extinta; em segundo lugar, com interações recorrentes e entreveros bem mapeados e resolvidos, determinadas partes podem aprender a buscar a composição por si mesmas.
6. Você acredita que, no futuro, teremos um sistema padrão de resolução de conflitos em âmbito internacional? Você acha que a sociedade está pronta para interação apenas com robôs para resolverem seus conflitos?
Resposta: As tentativas de padronizar a resolução online de conflitos cobrindo múltiplas jurisdições ou de estruturar sistemas verdadeiramente transnacionais ainda não avançaram tanto quanto seus entusiastas gostariam: embora não tenha produzido resultados revolucionários, a experiência europeia é particularmente interessante e conta, no campo dos conflitos de relações de consumo, com uma plataforma comunitária que dirige as partes para soluções locais, semelhante à plataforma brasileira Consumidor.gov.br. Por outro lado, as iniciativas de ODR existentes são inúmeras, promissoras e bastante dinâmicas. Mas ainda estamos no começo desta jornada. É em atividades repetitivas que os “robôs” de resolução de disputas hoje brilham: na recepção, triagem e encaminhamento de casos por meio de formulários – com os benefícios de coleta estruturada de dados –; no diagnóstico do problema a partir dos dados coletados (nos sistemas mais avançados, por meio do aprendizado por máquinas); no auxílio para que as partes se componham, quer com informações, quer com políticas de acordo pré-definidas; e, finalmente, no equacionamento das demandas pelos mecanismos mais adequados para as equacionar.
As soluções 100% automatizadas ainda são reduzidas: no mais das vezes concretizam acordos relativos a conflitos puramente financeiros e executam tarefas simples, como estornos de cartão de crédito. A automação parcial, por sua vez, tem conferido versatilidade e agilidade inéditas a disputas muito variadas. O Civil Resolution Tribunal no Canadá (distrito de British Columbia) ilustra muito bem o emprego de ODR em conjunto com técnicas semi automatizadas e tradicionais de resolução de conflitos: em funcionamento desde julho de 2016, o sistema recebe controvérsias de baixo valor, referentes a brigas de trânsito ou entreveros em condomínios, e promove automaticamente o diagnóstico das questões em jogo, a coleta de argumentos e provas e o encaminhamento das partes a negociações diretas, conversas facilitadas por um mediador, ou julgamento tradicional, conforme as particularidades do caso e o êxito ou as dificuldades encontradas ao longo de suas interações. Este é um dos exemplos de como instituições de resolução de controvérsias podem ser transformadas com a infusão de novas tecnologias, e de como é fundamental que todos nós, principalmente empresas e tribunais, cultivemos a criatividade e a liberdade para experimentar.
*Conteúdo publicado originalmente no Blog da Justto por Michelle Morcos e redirecionado para o Blog da Projuris após a aquisição da empresa.