A desconsideração da personalidade jurídica é um instituto relativamente recente no Direito brasileiro. Foi inserido expressamente no ordenamento apenas com a chegada do Código Civil, em 2002, que revogou parte do Código Comercial. Na carona veio também o conceito de desconsideração inversa: a partir dos efeitos de uma, surgiu a necessidade da outra.
Antes disso, embora o Código Civil de 1916 não fizesse nenhuma menção sobre o assunto, a desconsideração da personalidade jurídica já havia sido consagrada pela jurisprudência. Afinal, o caso concreto vinha exigindo uma resposta do Judiciário nas ocasiões em que os sócios passaram a abusar do benefício da responsabilidade limitada, concedida a alguns tipos de sociedade empresarial.
No entanto, toda essa discussão envolvendo a desconsideração da personalidade jurídica nasce do conceito inicial de personalidade jurídica. Tal instituto faz referência à personalidade que nasce junto com a constituição da sociedade empresarial. E que é feita a partir do registro na Junta Comercial.
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Tal status, quando adquirido, caminha junto com o chamado princípio da autonomia patrimonial. Isso significa que, em caso de eventual responsabilização judicial e dependendo do tipo societário escolhido para o negócio, o patrimônio da sociedade não se mistura do patrimônio que o sócio conquistou na vida pessoal. A existência da personalidade jurídica resulta, portanto, na separação patrimonial.
Em outras palavras, os bens que pertencem à sociedade respondem sempre ilimitadamente pelas obrigações sociais aos quais estão comprometidas. Já os bens particulares dos sócios só serão atingidos dependendo do tipo societário ao qual o negócio se enquadra. E somente depois que forem esgotados todo o patrimônio pertencente à pessoa jurídica.
Essa responsabilidade limitada está expressa no art. 1.024 do Código Civil:
Art. 1.024. Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais.
Além disso, essa separação patrimonial também só acontece quando o negócio estiver enquadrado como sociedade limitada ou como sociedade anônima. Ou, ainda, quando o empresário individual estiver constituído como Eireli.
Foi a partir desse dispositivo, portanto, que o conceito de desconsideração da personalidade jurídica surgiu. E a consequente desconsideração inversa também.
A desconsideração da personalidade jurídica é uma resposta legal para conter os abusos que passaram a ser cometidos em nome da autonomia patrimonial. Assim, baseados nesse princípio, sócios e administradores acabavam por não deixar bens suficientes em nome da sociedade para pagar as dívidas da pessoa jurídica. Com isso, eles se abstinham da responsabilidade dos eventuais atos praticados, como fraudes, por exemplo.
Trata-se, portanto, de um instituto que suspende de forma temporária a possibilidade de se manter a separação patrimonial mencionada anteriormente. Essa, aliás, é uma consideração importante: a desconsideração da personalidade jurídica não anula, nem invalida a pessoa jurídica. Ela apenas a afasta, em alguns casos excepcionais. A ideia é permitir que os credores prejudicados possam reivindicar o pagamento da dívida por meio dos bens e do patrimônio particular dos sócios.
A desconsideração, no entanto, deve aplicada apenas em caráter de exceção, nos casos em que a sociedade não tiver patrimônio suficiente para saldar as obrigações assumidas. A regra, portanto, deve ser sempre a preservação da autonomia patrimonial.
Assim, uma vez determinada a desconsideração da personalidade jurídica, os sócios passam a responder pelas dívidas da sociedade com o seu patrimônio pessoal.
E dependendo do argumento utilizado para concedê-la será necessária a presença de outro requisito. Esse caminho é dividido pela doutrina em duas teorias: a teoria maior e a teoria menor.
Assim, para que os sócios sejam responsabilizados pelas obrigações contraídas em nome da empresa – e para que a desconsideração da personalidade jurídica seja aplicada – não basta a configuração da simples inadimplência. É preciso que também esteja configurado um de dois pressupostos: o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial.
A teoria maior é a teoria adotada pelo Código Civil de 2002 e está expressamente prevista em seu texto. Diz, por exemplo, o art. 50:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
O desvio de finalidade, portanto, implica na lesão de credores quando a pessoa jurídica é usada para praticar atos diferentes do seu objeto social. A confusão patrimonial, por sua vez, diz respeito à falta de clareza entre o que é patrimônio da sociedade e o que é patrimônio pessoal dos sócios.
Em ambos os casos, no entanto, é imprescindível que ocorra o abuso da personalidade jurídica para que o instituto da desconsideração seja aplicado.
Tais requisitos estão presentes também na jurisprudência. Na ementa do voto proferido no Recurso Especial 279.273/SP, logo após o Código Civil de 2002 entrar em vigor, a ministra Nancy Andrighi explica:
A teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico brasileiro, não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração), ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração).
Além disso, o STJ continuou a reafirmar esse entendimento. Em 2011, o julgamento do célebre Recurso Especial 1.141.447/SP reforçou a ideia de que, para aplicar a desconsideração da personalidade jurídica, não basta apenas a inexistência dos ativos para cobrir o débito. É preciso também provar a intenção da fraude contra credores.
No voto, o ministro Sidnei Beneti, relator do caso, afirmou que:
A jurisprudência desta Corte chancela o caráter objetivo-subjetivo dos requisitos da desconsideração, exigindo a presença de duas facetas: a) a inexistência de ativo patrimonial do devedor, apto a arcar com as consequências do débito (“Haftung”) e b) a utilização maliciosa da pessoa jurídica desfalcada de ativo patrimonial por parte do sócio detentor dos haveres negados à pessoa jurídica deles exausta.
A partir desses entendimentos do STJ foram aprovados três enunciados do Conselho de Justiça Federal que tratam sobre o tema.
O enunciado 51 foi aprovado na I Jornada de Direito Civil:
Enunciado 51: A teoria da desconsideração da personalidade jurídica – disregard doctrine – fica positivada no novo Código Civil, mantidos os parâmetros existentes nos microssistemas legais e na construção jurídica sobre o tema.
Já o enunciado 7 também foi aprovado na I Jornada de Direito Civil:
Enunciado 7: Só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular e, limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam incorrido.
Por fim, o enunciado 146 foi aprovado na III Jornada de Direito Civil e não prejudica nenhum dos anteriores.
Enunciado 146: Nas relações civis, interpretam-se restritivamente os parâmetros de desconsideração da personalidade jurídica previstos no art. 50.
Apenas a título de conhecimento, a teoria menor tem como pressuposto apenas o não pagamento dos créditos. No entanto, como vimos, o STJ já afirmou que tal consideração não é suficiente.
Embora a regra geral deva ser sempre a teoria maior, não há consenso jurisprudencial sobre o assunto. Há casos, por exemplo, que alguns tribunais acabaram aplicando o conceito de teoria menor. Ou seja: consideram como requisito da desconsideração apenas a demonstração da insolvência da pessoa jurídica. E isso porque entendem que a desconsideração pode ser aplicada de maneira preventiva. A ideia é evitar uma fraude ou para recompor danos já causados.
Nesse mesmo contexto surgiu, no entanto, outro instituto de proteção de bens: a desconsideração inversa da personalidade jurídica. Embora não esteja expressa na legislação, a desconsideração inversa é um entendimento da doutrina e da jurisprudência que passou a ganhar espaço nos últimos anos.
A ideia é justamente o caminho contrário: liberar os bens da pessoa jurídica para saldar dívidas de cunho particular. A desconsideração inversa ocorre, portanto, quando o sócio utiliza a pessoa jurídica para proteger bens que seriam do patrimônio pessoal. Na prática, isso é feito por meio da transferência, ou da própria aquisição em nome da pessoa jurídica. Ao fazer isso, os credores pessoais do sócio não conseguem encontrar bens suficientes em seu acervo, já que eles estariam protegidos pela autonomia patrimonial da pessoa jurídica.
Justamente por fazer o caminho contrário, a desconsideração inversa começa, basicamente, no Direito de Família. É muito comum, por exemplo, o sócio querer esconder bens pessoais para se beneficiar nos casos de partilha ou divórcio.
Nesse sentido, tal conduta também se insere como mau uso da personalidade jurídica, justificando a aplicação da desconsideração inversa. Esse também é o entendimento do STJ. No julgamento do Recurso Especial 948.117/MS, a ministra relatora Nancy Andrighi pondera:
Sua adoção somente é recomendada quando forem atendidos os pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito estabelecidos no art. 50 do CC/02.
A ideia foi admitida também nos enunciados 283 e 285 da Jornada de Direito Civil. Diz os dispositivos:
Enunciado 283: É cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada “inversa” para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros.
Enunciado 285: A teoria da desconsideração, prevista no art. 50 do Código Civil, pode ser invocada pela pessoa jurídica, em seu favor.
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excelente artigo, parabens!