Muito se fala em Direitos Humanos na área criminal, por exemplo. Mas o que poucos advogados sabem é que eles são aplicáveis a diversas áreas do Direito. São aplicáveis, inclusive, ao Direito da Saúde. Esse texto, então, pretende elucidar algumas dessas inúmeras possibilidades.
O Direito da Saúde é o ramo jurídico que trata sobre questões relacionadas ao Direito Constitucional à vida, à saúde e à dignidade da pessoa humana.Esse ramo se relaciona, ainda, ao SUS, aos planos de saúde e aos profissionais de saúde. Ocupa-se em entender, por exemplo, a responsabilidade civil do médico, a obrigação de cobertura de tratamentos pelos planos de saúde e a necessidade de fornecimento de remédios de alto custo pelo SUS.
Não se esgotando nesses pontos, o Direito da Saúde abarca o Biodireito, que trata das nuances relacionadas ao direito à vida. Questões como meio ambiente, aborto de embriões anencéfalos, transfusão de sangue em testemunhas de jeová, clonagem, fertilização in vitro, dentre tantos outros temas relevantes e igualmente instigantes da natureza humana.
Nesse sentido, os Direitos Humanos se correlacionam, então, com a preocupação em equilibrar o avanço da ciência com as liberdades fundamentais. Assim, a ciência pode utilizar-se de pesquisas para progredir. Contudo, nunca deve deixar de lado os direitos fundamentais, nem ferir a dignidade da pessoa humana.
Dessa forma prevê a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos:
“Artigo 3º Dignidade humana e direitos humanos
- A dignidade humana, os direitos humanos e as liberdades fundamentais devem ser plenamente respeitados.
- Os interesses e o bem-estar do indivíduo devem prevalecer sobre o interesse exclusivo da ciência ou da sociedade.”
Seguindo a mesma linha, a Constituição Federal do Brasil estabelece a dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos:
“Art. 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III – a dignidade da pessoa humana.”
Resta clara, portanto, a profunda conexão existente entre Direitos Humanos e o Direito da Saúde. Entretanto, de forma prática, ainda é um pouco difícil estabelecer esse vínculo.
Pensando nisso, reuni três sub-ramos o Direito em que um advogado especializado nessa área se faz claramente necessário.
O primeiro ramo se refere às pesquisas científicas com seres humanos. Estas podem se desdobrar em:
A preocupação surgiu especialmente após a II Guerra Mundial. No período, diversas pesquisas científicas foram realizadas “em nome da ciência” e culminaram na perda de muitas vidas. Por essa razão, foi realizado o julgamento dos médicos responsáveis, que resultou no Código de Nuremberg.
O Código de Nuremberg, assim, trata do paciente que tem voz, que tem opinião, que precisa ser esclarecido e consentir livremente sobre os procedimentos e/ou tratamentos que lhe forem prescritos.
Seguindo esse entendimento, chamado de autonomia do paciente, o Conselho Nacional de Saúde do Brasil, elaborou a Resolução n. 466, em 2012, a qual estabelece as normas para realização de pesquisas com seres humanos.
Portanto, qualquer pesquisador precisa elaborar seu projeto e submetê-lo a um Comitê de Ética em pesquisa. Assim, poderá obter autorização para executá-lo. Regras básicas como relevância social da pesquisa, ponderação entre riscos e benefícios, bem como fornecimento de documentos que respeitem a autonomia da pessoa (como o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para o participante da pesquisa), devem ser cumpridas e comprovadas.
Nesse ponto, o(a) advogado(a) pode auxiliar, por exemplo, trabalhando em um comitê de ética de algum hospital de sua cidade, o qual além de aplicar os Direitos Humanos às pesquisas, agregará prática ao seu trabalho.
Além disso, pode oferecer orientações práticas, cursos e palestras sobre o assunto, que apesar de muito importante, ainda é pouco divulgado.
A palavra ortotanásia pode ser conceituada como “morte boa”. Significaria, desse modo, a morte no “no tempo certo”. Não há, então, intenção de terminar com a vida. Há, contudo, a intenção de atuar no possível para proporcionar ao paciente o máximo de qualidade e dignidade.
A ortotanásia é regulada pela Resolução n. 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina. Permite, assim, ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. E, acrescenta:
“O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.”
Podem ser oferecidos ao paciente, por exemplo, os serviços de cuidados paliativos caso o hospital os possua. Estes estão previstos nos princípios fundamentais do Código de Ética Médica:
XXII – Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados.
Cuidados paliativos compõem um tratamento, geralmente formado por uma equipe multiprofissional, que tira, então, o foco da doença e centraliza os cuidados no paciente. Foca, por exemplo, no alívio das suas dores (tanto físicas, quanto emocionais) e na sua espiritualidade. Do mesmo modo, dá importância aos seus desejos e prioridades de fim de vida.
Assim, a dignidade da pessoa humana pode ser respeitada quando os profissionais de saúde deixam de priorizar tratamentos e procedimentos, muitas vezes, invasivos, dos quais não são esperados benefícios práticos à saúde daquela pessoa.
Portanto, o(a) advogado(a) em Direito da Saúde pode atuar também nesse campo, auxiliando pessoas a elaborarem suas diretivas antecipadas de vontade (o famoso testamento vital), oferecer assessoria jurídica para clínicas e hospitais que trabalham com pacientes portadores de doenças graves e/ou em estágio avançado, bem como ministrar palestras e cursos sobre o assunto.
Os Direitos Humanos abrangem outro tema recente e crescente que é a busca pelo parto humanizado, que pode ser conceituado como um parto respeitoso, em que a vontade da gestante é valorizada. Decorre daí, então, o direito de optar pela presença de um acompanhante, de uma doula; pela não realização de episiotomia (corte perianal) de rotina, sem evidência ou necessidade; pela não realização da manobra de Kristeller (empurrar a barriga da gestante para acelerar o nascimento); dentre tantos outros direitos, que decorrem de evidências científicas e orientações da OMS – Organização Mundial de Saúde.
Dessa forma, novamente entra a autonomia do paciente, que a despeito da falta de regulamentação específica do nosso ordenamento jurídico, pode ser resguardada pelo artigo 15 do Código Civil:
Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.
Dessa maneira, em casos excepcionais e mais graves, quando ocorrem reais e efetivas violações aos Direitos Humanos da gestante, o(a) advogado(a) pode ingressar com uma ação indenizatória por violência obstétrica, que tem sido objeto de inúmeros julgados recentes, dentre os quais colaciono o seguinte:
RESPONSABILIDADE CIVIL – DANO MORAL – VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA.
Direito ao parto humanizado é direito fundamental. Direito da apelada à assistência digna e respeitosa durante o parto que não foi observado. As mulheres tem pleno direito à proteção no parto e de não serem vítimas de nenhuma forma de violência ou discriminação. Privação do direito à acompanhante durante todo o período de trabalho de parto. Ofensas verbais. Contato com filho negado após o nascimento deste. Abalo psicológico in re ipsa. Recomendação da OMS de prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde. Prova testemunhal consistente e uniforme acerca do tratamento desumano suportado pela parturiente. Cada parturiente deve ter respeitada a sua situação, não cabendo a generalização pretendida pelo hospital réu, que, inclusive, teria que estar preparado para enfrentar situações como a ocorrida no caso dos autos. Paciente que ficou doze horas em trabalho de parto, para só então ser encaminhada a procedimento cesáreo. Apelada que teve ignorada a proporção e dimensão de suas dores. O parto não é um momento de “dor necessária”. Dano moral mantido. Quantum bem fixado, em razão da dimensão do dano e das consequências advindas.Sentença mantida. Apelo improvido. [1]
Além disso, o(a) advogado(a) entra como defensor da dignidade humana, podendo orientar a gestante na elaboração de seu plano de parto, que é uma modalidade das diretivas antecipadas de vontade, ou até mesmo prestar serviços de consultoria jurídica para hospitais e maternidades que desejam se adequar às novas exigências da modernidade.
Por fim, pode-se perceber a grandeza inexplorada dos Direitos Humanos aplicados à saúde, por isso, urge a ampliação de discussões e estudos acerca não só desses temas aqui abarcados, mas também sobre todas as outras possibilidades de intersecção das ciências do direito e da saúde.
Vanessa Lemes, Advogada em Direito Médico e da Saúde. Formada em Direito pela PUC-GO e pós-graduanda em Direito Médico e da Saúde pela Faculdade Legale. Membra da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB/GO e Coordenadora do Núcleo de Direito Médico do Instituto de Estudos Avançados em Direito – IEAD.