Já fizemos um artigo aqui sobre a tragédia ocorrida em Santa Maria no ano de 2013: o incêndio na boate Kiss. A tragédia ganhou, em 2023, uma série na plataforma de streaming, Netflix, e voltou a ser comentada no país. Em uma das cenas mais emblemáticas da série, um dos pais que perdeu seu filho cita diversas situações em que ocorrem o que juridicamente tem o nome de Dolo.
Na cena o pai diz:
Se um carro derrapa na chuva e bate no outro, é um acidente. Mas se um motorista bebe uma garrafa de cana e atropela um pedestre, ele assumiu esse risco. Se um barco vira num mar bravio, é um acidente. Mas quando o dono do Bateau Mouche coloca 142 pessoas num barco que tem capacidade para 62 e ele naufraga por excesso de carga, não tem salva-vidas, e 55 pessoas morrem, ele assumiu esse risco. Se chove e há um deslizamento, é um acidente. Mas quando o executivo coloca um restaurante no caminho da barragem de brumadinho, sabendo que está no caminho da barragem, ela rompe e mata todos que estavam dentro, ele assumiu esse risco. Se um dirigente do flamengo recebe um relatório de alta relevância e grande risco sobre um quadro elétrico num contêiner e, mesmo assim, coloca jovens para dormir no contêiner, há um curto, o contêiner pega fogo e dez garotos morrem, ele assumiu esse risco. E quando um dono de boate superlota esta boate, sem saídas de emergência, sem extintores, com barras de metal impedindo a saída, com espuma tóxica no teto, e mesmo assim, permite um show pirotécnico, ou quando um músico de uma banda compra um fogo de artifício de uso externo porque é mais barato, usa dentro da boate, vê que o teto está pegando fogo, e com o microfone na mão, não avisa ninguém dentro da boate, ele assumiu esse risco…
A cena, que foi bastante compartilhada nas redes sociais, explicita o que é dolo, quando se está julgando um crime, para o Direito Penal. Apesar disso, existem ainda algumas outras definições de dolo e especificidades sobre este tema. Neste artigo, pretendo discorrer acerca disto. Acompanhe.
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Segundo a definição do Dicionário de Oxford, dolo é “em direito penal, a deliberação de violar a lei, por ação ou omissão, com pleno conhecimento da criminalidade do que se está fazendo“.
Assim, configura-se dolo quando existe a intenção de cometer um delito.
Por exemplo, é comum ver em notícias de jornal casos de homicídio doloso seguida da explicação “quanto há intenção de matar”. No entanto, como vimos, para ser considerado um ato intencional, basta que o acusado tenha assumido um risco, a depender da teoria selecionada.
Geralmente, essa explicação vem acompanhada da diferenciação entre dolo e culpa.
Como dito, em jornais, é comum se fazer a diferenciação entre dolo e culpa por meio da explicação da intenção. Entretanto, não são todas as teorias que assumem a intenção como único elemento de um crime.
O termo correto, seria, então, a vontade de praticar ato ilícito, entendendo-se por vontade, tanto a intenção, quanto o objetivo de se obter um resultado.
Assim, no caso do dolo, sua característica principal é a conduta intencional, voluntária e com objetivo de atingir um resultado. Aqui, vale destacar que, o dolo pode ser tanto em relação a agir de determinada maneira, como no exemplo da compra de fogo de artifício externo e uso dentro da boate kiss, ou então, de deixar de agir, como no mesmo exemplo, fez o cantor da banda, que ao ver o fogo no teto da boate, com o microfone na mão, deixou de avisar aos presentes sobre o fogo.
Já quando se fala de culpa, trata-se de crimes que tem mais relação com negligência, imprudência ou imperícia. O caso da boate Kiss, entretanto, pode também ser considerado culposo por alguns juristas. Ainda não se definiu de fato o tipo de crime cometido nesse caso, embora, em um primeiro julgamento, tenham sido condenados por homicídio doloso. Esse caso está sendo revisto.
Apesar disso, serviu para exemplificar essas diferenças no direito penal. Elas, por sua vez, são mais complexas, como vamos observar a seguir.
Quando se fala de dolo, então, existem três teorias principais no ordenamento jurídico para julgar um crime doloso:
A teoria da vontade ou consentimento é a teoria que diz que existe dolo quando o agente da ação, a pratica consciente e voluntariamente. Apesar disso, é importante destacar que, essa vontade não é necessariamente a vontade de violar a norma penal.
Na teoria do assentimento, caracteriza-se o dolo quando o agente consente em causar o resultado. Essa teoria se explica no artigo 18, inciso I do código penal:
Art. 18 – Diz-se o crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Crime doloso (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;(Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Ou seja, no caso da teoria do assentimento, o causador do crime, sabendo o resultado que poderia ter, ignorou e cometeu o ato mesmo assim.
Nesta última teoria, basta o simples prever de um resultado para que se considere dolo. Ou seja, torna-se irrelevante a subjetiva relação do agente com o resultado possível (intenção, buscar evitar ou indiferença).
O direito Brasileiro adotou, no entanto, uma concepção intermediária entre as teorias. Principalmente a teoria da vontade, quando adotou o dolo direto, e a teoria do assentimento, ao definir o dolo eventual. Além disso, o direito brasileiro também adoto outros tipos de dolo. Vejamos a seguir todos eles:
O dolo direto é aquele que o agente deseja obter o resultado ilícito. Ou seja, apesar de saber do resultado de sua ação, o agente a faz, ainda assim. Este, no direito brasileiro, é considerado dolo direto em primeiro grau.
Mas, existe ainda o dolo direto em segundo grau. Este ocorre quando, sabendo o resultado de sua conduta, o agente se mantém indiferente a ele.
Assim, para resumir, dolo direto é quando o agente tem conhecimento e vontade de praticar ato ilícito.
O dolo indireto pode ser divido em dolo eventual e dolo alternativo. Vejamos
O dolo eventual trata-se do dolo que ocorre quando o agente conhece os elementos de sua conduta, sabe o resultado dela, mas não a deseja, necessariamente.
Este se dispõe no artigo supracitado, ou seja, no art. 18 do código penal:
Art. 18 – Diz-se o crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Crime doloso (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;(Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Crime culposo (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Parágrafo único – Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Agravação pelo resultado (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Ou seja, quando ocorre algo similar aos exemplos citados no depoimento do pai de um dos jovens mortos na boate Kiss. Nesses casos, não se tinham desejo pelos resultados exemplificados, entretanto, sabiam-se dos riscos que foram assumidos pelos agentes.
A diferença está, então, no conhecimento dos riscos. Caso o agente não tenha conhecimento dos riscos quando têm determinada atitude e um crime acontece, ai ele deve ser julgado pelo crime culposo.
Também se relaciona com os riscos de determinada ação. Diz-se alternativo quando o ato pode ter mais de um resultado. Quando o agente sabe desses resultados distintos, sendo que um tem grau maior de periculosidade, e mesmo assim, assume o risco, aí caracteriza-se como dolo alternativo.
O dolo de dano é o tipo em que o agente deseja causar algum dano a outrem, ou seja, sua vítima. Um exemplo comum, nesses casos é o de homicídio doloso.
O dolo de perigo, por sua vez, é aquele em que o autor não deseja necessariamente causar um dano, mas deseja colocar outrem em perigo. Alguns juristas consideram, por exemplo, dirigir embriagado um dolo de perigo, uma vez que, conscientemente, o agente coloca outros em perigo.
O dolo genérico nada mais é que a vontade de se realizar o ato ilícito.
O dolo específico é aquele cujas características estão descritas em tipos penais, ou seja, o agente deseja realizar o fato ilícito como descrito na lei. Por exemplo, o crime de sequestro é um tipo de dolo específico e está tipificado no art. 148 do Código Penal:
Art. 148 – “Privar alguém de sua liberdade, mediante sequestro ou cárcere privado: Pena – reclusão, de um a três anos.
§ 1º – A pena é de reclusão, de dois a cinco anos: (…) V – se o crime é praticado com fins libidinosos”.
O dolo de propósito pode ser chamado também de dolo premeditado. Trata-se, então, do crime planejado. Por exemplo, em casos de serial killers e psicopatas, que possuem um plano de como irão realizar o ato ilícito, cujo objetivo é o de ferir outrem. No Brasil, existem alguns casos famosos de crimes premeditados, como o caso Nardoni, o caso richthofen, o caso do goleiro Bruno, etc. Esses tipo são mais utilizados para definição de pena a ser aplicada.
Já o dolo de ímpeto é aquele que ocorre, sem premeditação, trata-se de uma ação instantânea.
Vale lembrar que, ser um ato premeditado ou de ímpeto não retira a condição de dolo.
Essa divisão se refere a motivação para o crime. Por exemplo, se um criminoso sexual é morto por uma pessoa devido a seus crimes sexuais, enquadra-se em dolo bonus. Isto é, o dolo existe, uma vez que o agente o desejava, entretanto, existiam “motivos” pessoais para que o dolo ocorresse.
É diferente, então, do dolo malus, que se trata de quando o agente sabe e deseja cometer o delito, mas sem motivo aparente.
Vale destacar, mais uma vez, que, independente de opinião – e motivação – o dolo segue existindo e o agente deve ser penalizado por ele, segundo nosso ordenamento.
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Uma das regras jurídicas que mais se confunde é a diferença entre dolo eventual e culpa consciente.
O dolo é então, todos estes tipos acima destacados. Em todos eles, o conhecimento da ilegalidade dos atos, o fato de assumir o risco e a vontade são as características que condicionam o dolo. Já quando se fala em culpa consciente, se está dizendo sobre um agente, que tem consciência do resultado de seus atos, e busca evitá-los a fim de não prejudicar ninguém.
Ou seja, quando alguém comete um ato ilícito, mas busca evitar resultados que firam a outrem. Para explicar melhor, o agente não demonstra indiferença sobre o resultado de seu ato.
O dolo é, então, muito além do que se explica em jornais. Ele é cheio de subjetividades e depende da interpretação jurídica do país. Somente com ela é que se define qual o tipo de delito cometido, e consequentemente, só com ela se pode impor uma penalidade.
Dolo é a realização de ato ilícito que prejudique a outrem, onde se demonstra que, apesar do resultado, o agente segue praticando o ato. Para definir um ato como doloso, deve-se analisar, então, o conhecimento acerca da ilegalidade, a vontade de se fazer, o fato de o agente assumir riscos, etc….
Há dolo quando há vontade de realizar ação ilícita, indiferença sobre resultado prejudicial, vontade de cometer delito, consciência do resultado do delito ou quando o agente assume o risco por uma ação que pode causar resultado prejudicial para outrem.
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Excelente explicação. Conceitos de nível superior aos que se vê no cotidiano. Parabens.