A discussão sobre a Fórmula de Radbruch se reacendeu no Direito, quando o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás surpreendeu o meio jurídico com uma decisão inusitada. Um homem de 20 anos teve denúncia pelo crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP) arquivada por juiz da comarca de Luziânia, Goiás, em razão de ter constituído família com a vítima [1].
Decisões de absolvição nesse sentido já foram conhecidas pelo próprio Tribunal. Ainda assim, chama a atenção a fundamentação utilizada no caso concreto. A decisão levou em consideração que a aplicação literal da lei, a despeito das circunstâncias especiais do caso concreto, traria prejuízos incontáveis à família.
Sendo assim, para que se resguardasse um mínimo de justiça, o Tribunal decidiu contra o que manda a lei, arquivando a denúncia com base na Fórmula de Radbruch. Trata-se de um direito supralegal com poucos precedentes no país, com ênfase na rara utilização na seara criminal.
Este artigo visa, portanto, trazer algumas ponderações sobre a aplicação da regra criada por Radbruch no Direito Penal brasileiro.
Navegue por este conteúdo:
- Direito para além das normas?
- Fórmula de Radbruch
- Premissas da Fórmula de Radbruch
- Subjetivismo e pamprincipiologismo na Fórmula de Radbruch
- Os limites da aplicação Fórmula de Radbruch no Direito Penal brasileiro
- Conclusão
- Referências
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Direito para além das normas?
Afinal, o que é o direito? Essa é uma pergunta sobre a qual se debruçaram inúmeros filósofos, juristas e advogados famosos no decorrer dos tempos. Achar uma resposta para ela é, por isso, assumir uma corrente dentro do Direito – e, de imediato, cumpre-nos dizer que não são poucas.
No entanto, poderíamos arriscar afirmar que, em sua maioria, nenhuma delas foge da discussão sobre esta equação: definir a distância e aproximação entre o mundo do ser (moral, justiça) e o mundo do dever ser (normas).
É nesse sentido, ao discutir o lugar da moral e da justiça dentro (ou fora) do direito, por exemplo, que as duas maiores vertentes da área, o Positivismo Jurídico e o Jusnaturalismo, se opõem.
Presumir que o direito é só o que está positivado, sendo o juiz a boca da lei, já nos levou a tempos obscuros. De mesma forma, assumir que o direito deve se guiar pela moral e pela justiça também nos levou a tempos sombrios, já que juízes podem ser portadores de subjetivismos perigosos.
Entre ambos, está o direito brasileiro. À guisa de contextualização: o direito do Brasil não é um direito normativo puro (se é que existe) [2], mas um direito permeado por valores. Os princípios (constitucionais ou gerais do direito) não podem ser invocados e aplicados ao bel-prazer do julgador, pois possuem critérios objetivos de aplicação.
Fórmula de Radbruch
O autor
Para entender no que consiste essa fórmula, vamos ao autor. O homem por trás dela é Gustav Lambert Radbruch. Jurista e filósofo do século XX, ele lutou incansavelmente pela restruturação da vida acadêmica alemã no pós-guerra. E uma das suas maiores contribuições foi a hoje chamada Fórmula de Radbruch.
Na base da equação está a seguinte discussão: quando a justiça, enquanto valor social, deveria se sobrepor ao direito positivado. Em outras palavras, em que momento e de que maneira a aplicação do direito supralegal deveria ocorrer para promover a justiça.
A resposta está na fórmula, cujo enunciado veremos abaixo.
A fórmula
O jurista teve cuidado em suas ponderações teóricas, estabelecendo critérios para a aplicação do direito supralegal. Não à toa deu ares matemáticos à equação, chamando-a de fórmula. Fórmula essa que pode ser assim enunciada, nas palavras de Bix [3]:
O conflito entre justiça e certeza jurídica pode ser bem resolvido do seguinte modo: o direito positivo, assegurado pela legislação e pelo poder, tem prioridade mesmo quando o seu conteúdo é injusto e não beneficiar as pessoas, a menos que o conflito entre a lei e a justiça chegue a um grau intolerável em que a lei, como uma ‘lei defeituosa’, deva clamar por justiça.
Vê-se que na Fórmula de Radbruch o direito supralegal não deve ser aplicado diante de qualquer injustiça ou malefício. Sobre isso, a primeira parte do enunciado é bastante clara: o direito enquanto norma deve ser aplicado, ainda que injusto ou não benéfico, por uma questão de segurança jurídica.
Ato contínuo, contudo, o enunciado traz o contraponto. Se entre a lei e a justiça houver uma lacuna, ou seja, se a lei for insuportavelmente injusta, então ela não deve se sobrepor à justiça. Nesses casos a norma injusta deve ser afastada.
Premissas da Fórmula de Radbruch
Podemos ver que a regra possui requisitos objetivos. Radbruch toma cuidado para não recair em um subjetivismo arbitrário do julgador. Dessa forma, podemos estabelecer duas premissas [4]:
- O Direito Positivo, baseado na legislação e no poder estatal, tem aplicação preferencial, mesmo quando seu conteúdo for injusto e não for benéfico às pessoas.
- A justiça prevalecerá sobre a lei se esta se revelar insuportavelmente (rectius, extremamente) injusta, a tal ponto que se mostre uma norma injusta, continente de um direito injusto.
Sendo assim, quando o julgador se deparar com uma norma insuportavelmente injusta, ainda que legalmente válida, deve abster-se de aplicá-la. Isso, porque uma norma insuportavelmente injusta não é direito.
Embora se note o cuidado para dar um ar positivo à fórmula, cabe analisar a hipótese de subjetivismo ou, nos termos de Lênio Streck, pamprincipiologismo na aplicação da Fórmula de Radbruch.
Subjetivismo e pamprincipiologismo na Fórmula de Radbruch
O subjetivismo não é uma preocupação longínqua ou um problema do passado. Ao contrário, é questão atual, sobretudo das preocupações crescentes do jurista Lênio Streck.
E, com efeito, em uma discussão sobre o uso da Fórmula de Radbruch no Direito Penal, não há como negligenciar do risco de subjetivismo. Da mesma forma, não se pode aplaudir uma decisão garantista ou punitivista, a depender da vertente, sem que se meçam as consequências do precedente.
Streck é categórico. Critica veementemente a utilização sem critérios de princípios que, segundo ele, “não passam de álibis teóricos, despidos de normatividade” [5]. Para o autor, a utilização desmedida que se dá a princípios, tendo-os como sinônimos de valores, serve para legitimar teses por vezes sem qualquer fundamento de normatividade.
A este fenômeno denominou pamprincipiologismo, um perigoso e atual precedente no nosso ordenamento jurídico. Embora a definição critique o uso artificioso de princípios implícitos da Constituição, cabe, por óbvio, estendê-la ao uso de princípios gerais do direito antecedentes ao nosso ordenamento, como o nosso objeto, a Fórmula de Radbruch.
Isso nos leva à discussão aos limites do direito supralegal.
Os limites da aplicação Fórmula de Radbruch no Direito Penal brasileiro
Como vimos na notícia do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, a aplicação se deu em benefício do acusado. Contudo, não podemos concluir que a regra só poderia ser utilizada para beneficiar o réu sem nos aprofundarmos no contexto histórico.
Ora, a título de informação: a mesma fórmula justificou na Alemanha a condenação de guardas que, alegando cumprir a lei vigente e as ordens superiores, cometeram genocídio nas fronteiras do muro de Berlim.
Quão perigoso seria, por exemplo, se os juízes, em busca de uma justiça subjetiva, fundamentassem a Fórmula de Radbruch para condenar?
No Brasil já levantaríamos contra essa hipótese duas grandes bandeiras constitucionais (e que não nos esqueçamos), a saber:
Art. 5º […][…] XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção;[…] XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.
O direito supralegal baseado na Fórmula de Radbruch não pode ser invocado em prejuízo do acusado, sob pena de ferir o princípio da legalidade. Por isso, é terminantemente proibido qualquer juízo ou tribunal de exceção no país.
Não há malabarismo jurídico ou pamprincipiologismo que possa sustentar uma aplicação supralegal do direito para condenar ou prejudicar o acusado.
Conclusão
Assim, é nesse sentido que deve atentar-se o julgador, guiando-se sempre por uma ideia coletiva de justiça. Dessa forma, deve afastar o subjetivismo e a ideia individual de justiça, sempre atentando para não cair em pamprincipiologismos.
De outro modo, havendo insuportável injustiça na aplicação da lei ao acusado, é possível a aplicação do direito supralegal, em nome da Fórmula de Radbruch, para beneficiá-lo, ainda que a decisão seja contrária ao texto de lei.
Isso, pois, como incansavelmente já colocado, uma decisão válida, mas insuportavelmente injusta, deve ser afastada por não constituir direito.
Referências
- TJGO. Arquivada denúncia de estupro de vulnerável de réu que constituiu família com a vítima. Disponível online em <https://www.tjgo.jus.br/index.php/institucional/centro-de-comunicacao-social/17-tribunal/9442-arquivada-denuncia-de-estupro-de-vulneravel-de-reu-que-constituiu-familia-com-vitima>. Acesso em: ago de 2019.
- Ressaltamos a importância de desmistificar certa generalização. Kelsen escreveu a Teoria Pura do Direito e não uma teoria do direito puro. Para ele havia uma fonte valorativa do Direito que daria validade a todas as normas, seria esta a norma fundamental.
- BIX, Brian. Robert Alexy, a fórmula Hadbruchiana e a natureza da teoria do direito. Trad. Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira. Disponível online em <http://www.panoptica.org/seer/index.php/op/article/download/130/140>. Acesso em: ago de 2019.
- RODRIGUES JR., Otávio Luiz. A fómula de Radbruch e o risco do subjetivismo. Disponível online em <https://www.conjur.com.br/2012-jul-11/direito-comparado-formula-radbruch-risco-subjetivismo>. Acesso em: ago de 2019.
- STRECK, Lênio. O pamprincipiologismo e a flambagem do Direito. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2013-out-10/senso-incomum-pamprincipiologismo-flambagem-direito>. Acesso em: ago de 2019.
Este post foi escrito por Jean Carlos Batista Moura. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Professor na Escola Superior de Advocacia (ESA/GO). Associado ao Instituto de Estudos Avançados em Direito (IEAD) e membro do Núcleo de Direito Penal. Seu e-mail para contato é: [email protected]