A União, por intermédio do Tesouro Nacional, transfere para os Estados, Municípios e o Distrito Federal grandes quantias. Assim, isto impacta, consequentemente, a configuração da improbidade administrativa. No ano de 2019, por exemplo, as quantias, foram assim distribuídas:
Esses repasses são derivados de inúmeras fontes. E possuem, assim, diversas destinações, tais como: saúde, educação, turismo, esporte, infraestrutura, desenvolvimento, ciência e tecnologia, entre inúmeros outros.
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A gestão dos valores, ações e serviços descritos na Constituição Federal é realizada de forma solidária e participativa entre os três entes da Federação: a União, os Estados e os municípios. Os dois últimos, contudo, são responsáveis pela execução das ações e serviços no âmbito do seu território.
Os Estados e municípios, por força da Constituição Federal, de extensa legislação e normas infralegais, recebem estas verbas federais para implementação de programas, ações, realização de obras, pagamento de servidores e prestadores de serviços. Em antemão, devem apresentar, contudo, contas das despesas. E estão, desse modo, sujeitos à auditoria e fiscalização de órgãos federais, em especial do Tribunal de Contas da União (TCU), por força do artigo 5º, VII e artigo 41, IV, ambos da Lei nº. 8.443, de 16 de julho de 1992 (Lei Orgânica do TCU) [1].
Quando ocorrer a má-aplicação dos recursos repassados ou ocorrer a falta de prestação de contas, surge o fenômeno chamado de “malversação de patrimônio/recurso público”. resultando em abertura de tomada de contas especial no âmbito do TCU e ajuizamento de ações criminais e de improbidade administrativa, em desfavor dos gestores.
Assim, qual jurisdição seria competente para julgar as ações de improbidade contra estes gestores? A questão, em tese, teria sido respondida em meados de 1998, todavia, até a presente data possuímos discussão nas Cortes Superiores sobre o tema. Uma das prováveis causas está na edição dos Verbetes nº. 208 e 209 do Superior Tribunal de Justiça, que assim dispõem:
Súmula 208 – Compete a Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal por desvio de verba sujeita a prestação de contas perante órgão federal. (Súmula 208, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 27/05/1998, DJ 03/06/1998)
Súmula 209 – Compete a Justiça Estadual processar e julgar prefeito por desvio de verba transferida e incorporada ao patrimônio municipal. (Súmula 209, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 27/05/1998, DJ 03/06/1998)
Para melhor entender a controvérsia gerada sobre a questão da competência e improbidade administrativa quanto a verbas federais, trazemos trecho do voto da Min. Assusete Magalhães, nos autos do AgRg no CC 143.460/PA. Vejamos:
III. Nos termos da jurisprudência do STJ, (a) “a competência da Justiça Federal, prevista no art. 109, I, da Constituição Federal, é fixada, em regra, em razão da pessoa (competência ratione personae), levando-se em conta não a natureza da lide, mas, sim, a identidade das partes na relação processual” (STJ, CC 105.196/RJ, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe de 22/02/2010); e (b) “deve-se observar uma distinção (distinguishing) na aplicação das Súmulas 208 e 209 do STJ, no âmbito cível. Isso porque tais enunciados provêm da Terceira Seção deste Superior Tribunal, e versam hipóteses de fixação da competência em matéria penal, em que basta o interesse da União ou de suas autarquias para deslocar a competência para a Justiça Federal, nos termos do inciso IV do art. 109 da CF” (STJ, REsp 1.325.491/BA, Rel. Min. Og Fernandes, 2ª Turma, SEGUNDA TURMA, DJe de 25/06/2014).
(STJ, 1ª Seção, AgRg no CC 143.460/PA, Rel. Min. Assuste Magalhães, julgado em 26/10/2016, publicado em 19/12/2016)
Portanto, nos termos da jurisprudência do STJ, “a despeito da Súmula 208 do STJ, a competência absoluta enunciada no art. 109, I, da CF faz alusão, de forma clara e objetiva, às partes envolvidas no processo, tornando despicienda, dessa maneira, a análise da matéria discutida em juízo” [2]. Sendo assim, somente atrairia a competência da Justiça Federal, caso a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes [3].
Em sentido diverso, contudo, o Supremo Tribunal Federal (STF) aplica a Súmula 208 do STJ no âmbito cível, conforme ementa a seguir transcrita. Vejamos, então:
Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AUSÊNCIA. FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL. INTERESSE JURÍDICO. UNIÃO. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. HIPÓTESE. DESVIO DE VERBAS. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE SUS. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO, COM APLICAÇÃO DE MULTA.
I – Foi afastada do cenário jurídico norma que pretendia equiparar a ação por improbidade administrativa, de natureza civil, à ação penal, estendendo a esses casos o foro por prerrogativa de função.
II – A Justiça Federal é competente para processar e julgar as causas em que há interesse jurídico da União (art. 109, I, da CF).
III – A Justiça Federal é competente para processar e julgar as ações de improbidade administrativa que possuam o objetivo de recompor o patrimônio federal lesado mediante desvio de verbas do Sistema Único de Saúde SUS. IV – Agravo regimental a que se nega provimento, com aplicação de multa (art. 1.021, § 4°, do CPC). (ARE 1015386 AgR, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 21/09/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-206 DIVULG 27-09-2018 PUBLIC 28-09-2018)
Ainda, a jurisprudência do egrégio Supremo Tribunal Federal está assentada no sentido de que “compete à Justiça Federal apreciar processo-crime versando o desvio de recursos oriundos do Sistema Único de Saúde, considerada a atribuição dos órgãos de controle federais fiscalizarem a respectiva aplicação”.
Inclusive, este entendimento é adotado, por vários outros Tribunais de 2ª instância, que compreendem, desse modo, que as causas relativas a desvio e/ou malversação de recursos públicos federais repassados aos Estados, Distrito Federal e municípios, e sujeitos à prestação de contas perante órgão federal devem ser processadas e julgadas perante a Justiça Federal[4].
Portanto, a conclusão que se chega é:
Acreditamos, enfim, que a controvérsia somente será resolvida com a reformulação das Súmulas 208 e 209 do STJ, especificando que se aplicam ao âmbito penal ou ampliando, também, para a área cível.
Escrito por:
Felipe Cardoso Araújo Neiva, advogado, atuante nas áreas de Relações Governamentais, Trabalhista e Direito Coletivo, Sindical e Associativo. Sócio proprietário do Neiva Advogados Associados. Diretor Geral do Instituto de Estudos Avançados em Direito – IEAD e membro do Núcleo de Direito Administrativo do IEAD. Especialista em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Universidade Federal de Goiás, em 2018. Certificado pela Escola Nacional de Administração Pública – ENAP em “Gestão Estratégica de Pessoas e Planos de Carreira” e “Prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo”; neiva@neiva.adv.br. Está no Instagram como @fneiva_.