Na última semana, um assunto bombou nas redes sociais: o incêndio na boate Kiss, tragédia que deu origem a Lei Kiss (Lei 13425). Isso porque, no dia 26 de janeiro de 2023, completou-se 10 anos dessa fatalidade, e devido à data, dois streamings lançaram séries sobre o tema.
A Globoplay lançou a série documental “Boate Kiss – a tragédia de Santa Maria”, que foca no júri popular dos réus e conta com entrevistas de sobreviventes e outras pessoas envolvidas. Já a Netflix lançou a série “Todo dia a mesma noite”, inspirada no livro homônimo da Jornalista Daniela Arbex, que tem foco maior em contar a história dos familiares dos jovens que morreram na época e suas lutas na justiça.
Ambas as séries trouxeram a discussão à tona mais uma vez e, na internet, várias polêmicas surgiram acerca do tema. Neste artigo, vou falar sobre algumas delas, apresentar os principais pontos da legislação que se originou da tragédia e trazer alguns outros aspectos jurídicos sobre o que aconteceu no julgamento, durante a fatalidade online e offline e o que vem acontecendo nas redes sociais após a repercussão das séries.
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No dia 26 de janeiro de 2013, um incêndio em uma boate na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul foi o foco das notícias em todo o país. No total, 242 jovens morreram e mais de 600 ficaram feridos.
A tragédia iniciou-se após o vocalista da banda, que fazia show na balada, acender fogos de artifício de uso externo durante sua apresentação. Os fogos, então, atingiram a espuma que cobria o teto da boate. Rapidamente, o fogo se alastrou e as pessoas começaram a tentar evacuar o local.
Acontece que a boate tinha apenas uma saída e barras de ferro a bloqueavam. Além disso, os extintores de incêndio não funcionavam e a espuma que cobria o teto, quando em combustão, gerava gases tóxicos. Apesar de se tratar de um incêndio, a asfixia foi a principal causa morte nessa tragédia.
Após as mortes, os pais dos jovens que ali estavam passaram a pedir por justiça e que os culpados pelo ocorrido pagassem. Principalmente, pelo fato de que a boate funcionava com inúmeras irregularidades, apesar de possuir alvará. O caso ainda não se encerrou. Em 2021 foram condenados o dono da boate, o vocalista da banda, o sócio da boate e o ajudante da banda. Entretanto, os réus entraram com recurso e aguardam novo julgamento em liberdade.
Quatro anos após o incêndio na boate Kiss, foi sancionada a Lei de prevenção e combate a incêndios e desastres nº 13425, que também ficou conhecida por Lei Kiss.
A lei, estabelec, então, as diretrizes para a prevenção e combate a incêndios e desastres em estabelecimentos, edificações e áreas de reunião públicas. Ela também define em quais casos agentes públicos podem sofrer penalidades por agirem em prol de benefício próprio em relação a alvarás e permissões.
Ademais, a Lei Kiss carateriza a prevenção de incêndios ou desastres como condição para a execução de apresentações artísticas, culturais, de esportes, entre outros, e atribui responsabilidade para o descumprimento das regras aos órgãos de fiscalização.
O art. 2º desta Lei também especifica diretrizes em relação ao número de pessoas no local de realização dos eventos, dispondo em seus §1º e §2º:
§ 1º As normas especiais previstas no caput deste artigo abrangem estabelecimentos, edificações de comércio e serviços e áreas de reunião de público, cobertos ou descobertos, cercados ou não, com ocupação simultânea potencial igual ou superior a cem pessoas.
§ 2º Mesmo que a ocupação simultânea potencial seja inferior a cem pessoas, as normas especiais previstas no caput deste artigo serão estendidas aos estabelecimentos, edificações de comércio e serviços e áreas de reunião de público:
I – (VETADO);
II – que, pela sua destinação:
a) sejam ocupados predominantemente por idosos, crianças ou pessoas com dificuldade de locomoção; ou
b) contenham em seu interior grande quantidade de material de alta inflamabilidade.
Além disso, a referida Lei estabelece o que os proprietários, bombeiros ou equipe técnica da prefeitura devem se atentar para que o estabelecimento possa funcionar:
Art. 4º O processo de aprovação da construção, instalação, reforma, ocupação ou uso de estabelecimentos, edificações e áreas de reunião de público perante o poder público municipal, voltado à emissão de alvará de licença ou autorização, ou documento equivalente, deverá observar:
I – o estabelecido na legislação estadual sobre prevenção e combate a incêndio e a desastres e nas normas especiais editadas na forma do art. 2º desta Lei;
II – as condições de acesso para operações de socorro e evacuação de vítimas;
III – a prioridade para uso de materiais de construção com baixa inflamabilidade e de sistemas preventivos de aspersão automática de combate a incêndio;
IV – (VETADO); e
V – as exigências fixadas no laudo ou documento similar expedido pelo Corpo de Bombeiros Militar, por força do disposto no art. 3º desta Lei.
Por fim, a Lei Kiss também aponta quais informações os estabelecimentos devem informar a seus clientes antes de estes entrarem:
Art. 11. O disposto no art. 10 desta Lei não exime os responsáveis pelos estabelecimentos de comércio ou de serviço de manter visíveis ao público o alvará de funcionamento ou ato administrativo equivalente expedido pelo poder público municipal e demais documentações que são requisitos para o seu funcionamento.
Parágrafo único. Sem prejuízo de exigências complementares nesse sentido determinadas pelos órgãos competentes, deverão estar divulgados na entrada dos estabelecimentos de comércio ou de serviço:
I – o alvará de funcionamento ou ato administrativo equivalente; e
II – a capacidade máxima de pessoas.
Apesar de a Lei Kiss ser fundamental para que não se repita a tragédia de Santa Maria, recentemente ela teve seus artigos alterados e suas diretrizes flexibilizadas. O Diretor do Sindicato dos Engenheiros, João Leal Vivin, em entrevista ao portal G1 disse:
É o fim da Lei Kiss? A gente pode ter um grande incêndio e ter que fazer uma nova lei porque a atual já não cobre mais.
Entretanto, segundo o chefe dos bombeiros do governo do Rio Grande do Sul, as diretrizes continuam sendo cobradas e a alteração foi com maior foco na parte processual, ou seja, no momento de encaminhamento do plano. Vejamos então o que mudou:
A isenção da apresentação do plano de combate a incêndio para os seguintes estabelecimentos e imóveis: residência unifamiliar, propriedade agrosilviopastoril e atividade sem atendimento ao público ou estoque de materiais. As áreas de até 200 m² e até dois pavimentos (baixo risco) também foram isentas, mas a lei solicitou que estas possuam extintores de incêndio que funcionem, sinalização e saídas de emergência e uma pessoa treinada para uso dos extintores e evacuação do local.
Já para áreas de até 750 m² e até três pavimentos (baixo ou médio risco), segue sendo necessário apresentar o plano, mas um plano simplificado e tendo a vistoria dispensada. E áreas superiores a 750 m² e outros requisitos (alto risco) devem possuir o plano e a vistoria.
Dez anos após a tragédia, então, a legislação se tornou mais flexível.
Durante o processo da Boate Kiss, várias reviravoltas aconteceram. Os pais, em busca de justiça pelos seus filhos, começaram a divulgar algumas informações sobre o ministério público, com isso, eles acabaram sendo alvos de novos processos, relacionados à calúnia, difamação e até falsidade ideológica.
Entretanto, nesta ação, os pais saíram vencedores. O processo acerca do incêndio em si, cujos réus eram o dono da boate, seu sócio, o cantor da banda e um ajudante da banda teve um resultado diferente.
Inicialmente, a solicitação da acusação era de que o processo fosse a júri popular sob acusação de homicídio doloso. A defesa, pediu o oposto, que os réus fossem julgados por homicídio culposo e que fossem julgados por um juiz.
A decisão, apesar do empate, foi em prol da acusação. Nesse sentido, causou-se uma controvérsia jurídica, uma vez que, a lei diz que em caso de empate, a decisão é pró réu.
Entretanto, o entendimento da juíza foi de que, nesse caso, não era um julgamento de culpa, mas sim, de como seria o julgamento do caso. Dessa forma, ela poderia atender a solicitação da acusação. Apesar disso, diversos juristas continuam discordando desse entendimento.
Em relação ao júri popular, este foi marcado por ser o maior em duração, em toda a história do estado do Rio Grande do Sul: foram 10 dias de julgamento. Ao final, os 4 réus foram condenados a penas que variam entre 18 a 22 anos de prisão.
Entretanto, algumas fatos ocorridos no julgamento levaram a 1ª Câmara Criminal do TJ-RS a anular o processo. Os réus da Boate Kiss seguem aguardando o julgamento em liberade.
Os motivos alegados para a anulação do julgamento:
Não há previsão oficial de data para um novo julgamento. Em diversas entrevistas à imprensa, os advogados dos réus afirmaram esperar que tal desenrolar aconteça dentro de cerca de dois anos após a anulação.
Como dito, então, com os 10 anos da tragédia, duas séries foram apresentadas ao público. Além das discussões acerca do processo em si, outros temas se tornaram pauta na internet. Vejamos alguns:
A primeira polêmica tem a ver com a série baseada no Livro de Daniela Arbex. Isso porque, após o lançamento da série, diversos pais de jovens que compõe o rol de vítimas fatais da Boate Kiss afirmaram não terem autorizado a produção.
A jornalista e a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da tragédia de Santa Maria, esclareceram que tanto a Netflix, quanto a jornalista tinham autorização da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) para a produção da série.
Ocorre que, quem fez a autorização foi a associação, mas algumas famílias que não pertencem a ela não foram consultadas e, portanto, se incomodaram com a série. Estes, pretendem processar a Netflix por conta da série, com o objetivo de fazer algumas adequações. O argumento é de que essas famílias não desejam reviver essa dor. Até o momento, não houve processo.
Outra discussão que se levantou foi em relação às imagens das pessoas que faleceram no ocorrido. Com a repercussão da série, muitas pessoas passaram a buscar imagens no Google e divulgar nas redes sociais.
Acontece que essas imagens são reais e as famílias não deram autorização para esta divulgação. A prática que vem acontecendo nos meios digitais fere o direito de imagem das pessoas e das famílias, além de ser desrespeitosa com a dor desses familiares.
Outro acontecimento que gerou revolta nas redes foi causado por um cantor de uma banda de forró que, em uma apresentação, fez um show de pirotecnia e ao balançar os fogos no alto, falou ao microfone “Alô, Boate Kiss!”, em tom de ironia. Diversos internautas criticaram a falta de humanidade e sensibilidade do cantor.
A lei Kiss é a legislação que dispõe acerca da prevenção de incêndios e desastres em locais públicos. Ela aponta as diretrizes que os estabelecimentos devem seguir em prol da segurança no local. Ela se originou devido ao incêndio na boate Kiss, na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul no ano de 2013.
A lei AVBC é a a legislação que visa a implementação do auto de vistoria do corpo de bombeiros. É uma lei complementar de janeiro de 2015 que dispõe acerca da proteção de pessoas e patrimônios em casos de incêndio.
Sim. De todos os jovens que estavam na casa noturna, 242 morreram e mais de 600 ficaram feridos, mas não morreram.
Esta tragédia causou e causa até hoje muita comoção em todo o país. Após dez anos, voltamos a relembrá-la. Por outro lado, vemos que, devido ao tempo, quase nos esquecemos e deixamos que coisas como a flexibilização da Lei Kiss acontecesse.
Mas, esta é uma história que não pode ser esquecida. E é importante analisar todos os acontecimentos para que não se repita!