Em tempos de polarização, não é difícil nos depararmos com situações em que os conflitos surgem por conta de opiniões emitidas nas redes sociais, em sua maioria. Esta é a realidade brasileira do mundo. Mas afinal: a Constituição Federal garante a liberdade de expressão em toda e qualquer situação?
A partir do momento em que o Brasil saiu de um contexto de regime militar, lutou-se muito para proteger os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. É notório, portanto, que grande parte do ordenamento jurídico brasileiro da atualidade é carregado em relação à liberdade de expressão. E isso ocorre em razão da contextualização histórica deste momento que antecedeu a Carta de 1988.
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A liberdade de expressão garantida como direitos fundamentais, portanto, é definida assim por Gonçalves (2011, p. 365):
Por liberdade de pensamento e de manifestação entendemos a tutela (proteção) constitucional a toda mensagem passível de comunicação, assim como toda opinião, convicção, comentário, avaliação ou julgamento sobre qualquer temática, seja essa relevante ou não aos olhos do interesse público, ou mesmo dotada – ou não – de valor. Por isso mesmo, não é apenas a transmissão da mensagem falada ou escrita que encontra proteção constitucional, como ainda a mensagem veiculada através de gestos e expressões corporais. Certo é que, a aferição da prática deve ser contextualizada, ou seja, analisada à luz de um caso concreto, não cabendo (a priori) uma delimitação absoluta sobre o exercício da liberdade de expressão (por exemplo artística) ou a falta da mesma.
Por outro lado, nos dizeres de Rocha (2005), a liberdade de expressão pode ser conceituada como
a manifestação pública de ideias, opiniões, críticas, crenças, sentimentos etc., abrangendo, em sua inteireza, quaisquer formas de exteriorização da subjetividade ínsita ao ser humano.
Ainda, apura-se que a liberdade de expressão é dotada de duas dimensões: uma individual e outra coletiva. A primeira resguarda, por exemplo, o direito do indivíduo de expor publicamente suas opiniões e divulgar suas ideias. Já a segunda garante o direito de que toda a sociedade possa receber informações e ideias alheias.
Assim, Rodrigues Jr. (2011, p. 89-90) leciona a esse respeito:
No entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o direito à liberdade de expressão apresenta uma dimensão individual e outra coletiva. Sob a ótica individual, o direito à liberdade de expressão resguarda o direito de todo e qualquer indivíduo de manifestar publicamente suas ideias de qualquer índole e o direito de utilizar todos os meios lícitos para disseminá-las amplamente, em prol do enriquecimento do acervo de informações e conhecimentos da humanidade. Sob a ótica coletiva, a liberdade de expressão garante a terceiros o direito de receber informações e ideias alheias.
E não é só. Além disso, ao versar sobre liberdade de expressão, Travassos recorda os ensinamentos do Ministro Marco Aurélio Mello sobre o tema (MELLO apud TRAVASSOS, 2013, p. 287):
A respeito do tema, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, destaca que a liberdade de expressão deve ser compreendida como uma “garantia de diversidade de opiniões”, o que “ajuda a formar uma convicção soberana, livre e popular acerca das mais variadas matérias, sejam políticas, sociais ou históricas”.
A liberdade de expressão é um direito de primeira categoria, o que impõe ao Estado o dever de não reprimi-la ou censurá-la. Isso obriga que o agente público a fornecer os meios adequados para assegurar que ela seja exercida por toda a sociedade.
No entanto, embora seja um direito fundamental, Travassos (2013, p. 290) alerta que
não se está, de forma alguma, induzindo à ideia de que a liberdade de expressão não poderá jamais sofrer restrições.
Barroso (2005, p. 109) corrobora este entendimento. Para ele, as liberdades de informação, expressão e de imprensa
não são direitos absolutos, encontrando limites na própria Constituição. É possível lembrar dos próprios direitos da personalidade, como honra, intimidade, vida privada e imagem (arts. 5º, X e 220, § 1º), segurança da sociedade e do Estado (art. 5º, XIII), proteção da infância e da adolescência (art. 21, XVI); no caso específico de rádio, televisão e outros meios eletrônicos de comunicação social, o art. 221 traz uma lista de princípios que devem orientar sua programação.
Ainda, Gonçalves (2011, p. 366-367) expõe que não se trata de um direito absoluto:
Falar em direito de expressão ou de pensamento não é falar em direito absoluto de dizer tudo aquilo ou fazer tudo aquilo que se quer. De modo lógico-implícito a proteção constitucional não se estende à ação violenta. Nesse sentido, para a corrente majoritária de viés axiológico, a liberdade de manifestação é limitada por outros direitos e garantias fundamentais como a vida, a integridade física, a liberdade de locomoção. Assim, embora haja liberdade de manifestação, essa não pode ser usada para manifestações que venham a desenvolver atividades ou práticas ilícitas (antissemitismo, apologia às drogas, ao crime etc.).
Assim, o texto constitucional consagra a liberdade de pensamento, mas veda o anonimato. Afinal, é por meio do conhecimento da autoria que se faz possível a utilização do direito de resposta, proporcional ao agravo. Além disso, é dessa maneira que também se pode pleitar judicialmente a indenização por danos materiais e morais que atinjam a imagem da pessoa lesionada (art. 5º, IV da CF/88). O mesmo ocorre com as ações penais para as tipificações dos crimes contra a honra, por exemplo.
Não obstante, Sarmento (2006, p. 56) esclarece que a liberdade de expressão não existe apenas para proteger as opiniões que estão de acordo com os valores nutridos pela maioria. Ela também protege aquelas que chocam e agridem. Portanto, o direito à liberdade de expressão é irrestrito, no sentido de que todos são iguais perante a lei. Dessa forma, têm-se o acesso a liberdade de expressão, por-exemplo.
Embora existam muitas doutrinas e estudos relacionados à liberdade de expressão, ainda há poucas obras relacionadas ao hate speech ou, na versão traduzida, discurso de ódio.
Este instituto jurídico, bastante conhecido em alguns países, permite o exercício da liberdade de expressão de maneira irrestrita. Além disso, ainda abarca toda e qualquer pessoa, inclusive os veículos de comunicação.
É, portanto, o meio pelo qual pode se dizer tudo o que quiser sobre os mais variados temas. Ensina Travassos (2013, p. 291):
Em feição geral, o hate speech valida todas as formas de manifestação de opinião, ainda que revestida de palavras e pensamentos que, direta ou indiretamente, expressem o ódio do interlocutor a determinadas pessoas ou grupo de pessoas com características convergentes, comumente tratados sob o enfoque das minorias.
Há, na jurisprudência pátria, famoso case sobre o tema: o caso Ellwanger. Siegfried Ellwanger, escritor gaúcho, chegou a ser condenado por suas publicações e livros de cunho racista. A esse respeito, o Ministro Gilmar Mendes (2008, p. 2) manifestou:
O tema é, sem dúvida, um tanto paradigmático, pois nos leva a questionar a respeito dos próprios limites da liberdade de expressão, nos obriga a refletir sobre a necessidade de se diferenciar a tolerância do dissenso e a examinar a impossibilidade de se tolerar a intolerância, em vista de seu potencial disseminador do ódio em sociedades democráticas.
Assim, sempre que se apresentar situações onde haja o discurso de ódio, intolerância ou desprezo contra algum grupo, com motivações ligadas às diferenças de etnia, religião, gênero, deficiência física ou mental e orientação sexual, haverá ali um modelar exemplo de hate speech.
Contudo, como indica Sarmento (2006, p. 90):
É inegável que, ao proibir a difusão de ideias ainda que abomináveis, como as latentes no hate speech, o Estado atinge negativamente a autonomia individual tanto daqueles que têm estas ideias e são impedidos de comunicá-las publicamente, como dos integrantes do público em geral, que ficam privados do acesso elas. Não obstante, esta perda do ponto de vista da autonomia individual deve ser cotejada com o “ganho” que se obtém em relação a este mesmo valor, no que concerne não só à autonomia e autorrealização dos indivíduos que seriam os alvos destas manifestações de ódio, preconceito e intolerância, como também dos outros componentes da sociedade.
Embora adote uma postura de ódio, o hate speech, ainda assim, representa o exercício da liberdade de expressão. Ainda que a tendência seja de tutelar os direitos da personalidade do ofendido, não se pode desprezar que há um conflito entre a liberdade de expressão e o direito da personalidade do ofendido. No Brasil, por exemplo, o Judiciário sempre arbitrou neste sentido. Já no cenário internacional (com exceção dos Estados Unidos), por exemplo, prevalece a orientação de se reprimir o discurso de ódio.
Por isso, levando em conta esta relação agitada, Barroso (apud TRAVASSOS, 2013, p. 293-294) lembra que
a Constituição é um documento dialético – que tutela valores e interesses potencialmente conflitantes – e que os princípios nela consagrados entram, frequentemente, em rota de colisão.
Travassos, por sua vez, demonstra que o método ideal para a solução dessa colisão é o método da ponderação. Diz ele (2013, p. 294):
No exercício da ponderação são sugeridas três etapas essenciais:
(i) identificação, no caso concreto, das normas relevantes e os eventuais conflitos entre elas;
(ii) exame dos fatos e sua interação com os elementos normativos;
(iii) exame conjunto das normas e fatos concretos, apurando os pesos a serem medidos em relação a um ou outro direito e a sua intensidade.
Dessa forma, diante de um caso concreto em que se verifique o direito fundamental à liberdade de expressão (pela veiculação pública de um hate speech) em rota de colisão com os direitos da personalidade do ofendido (honra, por exemplo), aplicando-se os princípios instrumentais da proporcionalidade e razoabilidade, devem-se sopesar os direitos e desequilibrar seus pesos, de modo a permitir, neste caso, que a tutela dos direitos da personalidade prevaleça em detrimento à liberdade de expressão.
Contudo, pouco adianta a solução do conflito do hate speech depois que outro direito fundamental é violado. Assim, como indica Sarmento (2006), restringir o hate speech não é uma tentativa de estabelecer, à moda comunitarista, limites perfeccionistas ao debate público. Isso impede os dissidentes de se insurgirem contra esta ou aquela concepção, por exemplo.
Assim, a proibição pode ser idealizada não como vedação ao dissenso em relação aos valores básicos da comunidade. Pelo contrário. Ela pode ser um instrumento necessário à garantia da integridade do próprio discurso público. E tal discurso, para poder desempenhar o seu papel numa democracia marcada pelo pluralismo, deve estar estruturado sobre regras que assegurem o reconhecimento da igual dignidade de todos os seus participantes.
Desta forma, a restrição ao discurso de ódio não ameaça os conceitos de democracia. Ela os fortalece, portanto. Devemos nos lembrar sempre de que não há nenhum direito capaz de sobrepujar a qualquer outro. E isso, claro, também vale para a liberdade de expressão.
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BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade: critérios de ponderação, interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-01.htm> Acesso em: 26 fev. 2019.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
JUNIOR, Edson Beas Rodrigues. Solucionando o conflito entre o direito à imagem e a liberdade de expressão: a contribuição da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Revista dos Tribunais, ano 100, v. 905, São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 89-90, 2011.
MENDES, Gilmar. A jurisdição constitucional no Brasil e seu significado para a liberdade e a igualdade. Disponível em: < https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaArtigoDiscurso/anexo/munster_port.pdf > Acesso em: 26 fev. 2019.
ROCHA, Fernando Luiz Ximenes (Org.), et al. Direito Constitucional contemporâneo: estudos em homenagem ao professor Paulo Bonavides. Belo Horizonte, Del Rey, 2005
SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do hate speech. Revista de Direito do Estado. Rio de Janeiro: Renovar, ano 1, n. 4, p. 56, out./dez. 2006.
SCHREIBER, Anderson; TRAVASSOS, Marcela Maffei Quadra, et al. Direito e mídia. São Paulo: Atlas, 2013.