Na atuação profissional no ramo do direito administrativo, não é raro vermos decisões judiciais, administrativas ou mesmo dos Poderes Executivos como um todo que afastam, mitigam ou limitam, expressamente, a livre iniciativa, princípio assegurado nos arts. 1, IV, e 170 da nossa Constituição Federal de 1988.
Quase sempre, os agentes jurídicos que afastam a livre iniciativa justificam essa atuação mais direta e invasiva do Estado na atividade econômica sob a frágil e capenga alegação de estarem agindo dentro do “interesse público”.
A desculpa fica ainda mais sedutora – e com aparência mais sofisticada – quando o interesse público do agente que limita a livre iniciativa tem como pano de fundo algum tipo de serviço que é considerado pela nossa Constituição como de interesse público. Isso é visível no caso dos Correios (21, X, 22, V), petróleo (177, I a IV, §2º e incisos) e telecomunicações (21, XI, 22, IV, 68, XII).
Visto isso, neste artigo, faz-se uma revisão da questão. Do exemplo do princípio da eficiência, que conquistou seu lugar no direito administrativo, a análise restaura a livre iniciativa. E apela à sua necessidade.
O exemplo do princípio da eficiência
Eficiência em confronto com a legalidade
A realidade da livre iniciativa é semelhante, dentro das devidas proporções, à que enfrentou o princípio da eficiência. Esta se instaurou com o advento da carta magna e pelos impactos da constituição no direito administrativo. Desde então vem até os dias atuais. Explica-se.
Alegando maior importância e relevância da legalidade em sentido estrito diante de qualquer outro princípio, os agentes jurídicos acabavam afastando ou preterindo o princípio da eficiência. E, junto com ele, os demais princípios que regem a administração pública: a moralidade, a publicidade e a impessoalidade.
Tudo isso, em nome da estrita legalidade. Isso significa que, mesmo que as leis fossem ruins ou não efetivas, por exemplo, decidia-se pela legalidade. Isso se aplicava, sobretudo, ao direito público.
Legalidade contra a eficiência
O que o apego – a nosso ver, injustificável – na dita legalidade em sentido estrito gerou?
A falta de unidade das decisões. E, por mais paradoxal que pareça, até em injustiça. Isso, posto que a própria análise da legalidade no caso concreto também está, por óbvio, sujeita ao intérprete.
Além disso, ao contrário do que esperavam os doutrinadores clássicos do direito administrativo (como Celso Antonio Bandeira de Mello e Maria Sylvia Zanella di Pietro, por exemplo), não houve maior segurança jurídica. Afinal, repetimos, mesmo nos casos de legalidade em sentido estrito, há análises e interpretações a serem feitas. Mesmo porque, se assim não fosse, um computador conseguiria fazer o trabalho de juízes, advogados e demais agentes jurídicos.
Ou seja, além de ficar distante dos proveitos que prometia, o apego à legalidade estrita em detrimento, sobretudo, do princípio da eficiência gerou um Estado com serviços altamente ineficientes, burocratizados e pesados. Do mesmo modo, na livre iniciativa. Nos dizeres do Ministro Marco Aurélio Mello, no voto da ADPF 46:
(…) Esse paradigma de Estado interventor, parâmetro para as constituições brasileiras, (…) vem sendo alvo de duras e acertadas críticas, porquanto a experiência demonstrou a existência de um Estado ineficiente, paternalista, incompetente ao não atender com presteza a demanda dos cidadãos, causador de vultosos endividamentos públicos; Um Estado esbanjador, inchado, incapaz de investir nas demandas sociais mais urgentes – transporte, habitação, saúde, educação, segurança pública –, levando o indivíduo a sentir-se sufocado e cativo nas mãos do Estado-pai e, ao mesmo tempo, achar-se no direito de eternamente ficar clamando do Estado resposta a todo e qualquer anseio.”
A virada para a eficiência: o “patinho feito” conquista lugar na ágora
Constatada a ineficácia de seguir cegamente a legalidade estrita, a eficiência – o “patinho feio” do direito administrativo – ganhou, repentinamente, notoriedade. Afinal, se cumprir a lei significa ser ineficiente, melhor descumpri-la no caso concreto e, então, ser eficiente.
Embora muitos autores permaneçam presos aos entendimentos “clássicos”, a doutrina moderna, expressivamente, já reconhece a importância do princípio da eficiência. Ela inclusive o coloca em pé de igualdade (quando não como mais importante) que os demais princípios (inclusive da legalidade).
Agora, importa analisar o que decorre disso para o princípio da livre iniciativa.
O paralelo do princípio da eficiência com a livre iniciativa
De menosprezada a respeitada: a revisão do princípio
Esse mesmo caminho parece estar percorrendo a previsão da livre iniciativa. Vale dizer que ela sempre foi a menosprezada na interpretação da organização constitucional do país. Melhor: foi constantemente mitigada e afastada, de acordo com o interesse do intérprete – ou da sanha do governo da ocasião.
Visto o absurdo nível de interferência e ineficiência do Estado nas atividades econômicas (exemplo recente: Decreto da Prefeitura de São Paulo querendo dizer até preço máximo do patinete de aluguel [1]), a livre iniciativa passa a ser mais valorizada e respeitada. Sobretudo pelos doutrinadores mais modernos. Felizmente, parece surgir um olhar mais acurado e favorável à garantia e respeito da real livre iniciativa. E esse olhar paulatinamente alcança novos horizontes.
Defesa da Corte e uma aula sobre livre iniciativa
Ainda que timidamente, esse olhar chegou inclusive às instâncias Superiores. Pôde ser sentido em posicionamentos como os dos Ministros Luís Roberto Barroso, Luis Felipe Salomão e Marco Aurélio Mello. Este, por exemplo, em seu voto à ADPF 46, do monopólio dos Correios, foi memorável. Em uma aula sobre o assunto e a conjuntura política e social brasileira, ele diz:
(…) A liberdade de iniciativa constitui-se em uma manifestação dos direitos fundamentais do homem, na medida em que garante o direito que todos têm de se lançar ao mercado de produção de bens e serviços por conta e risco próprios, bem como o direito de fazer cessar tais atividades. Os agentes econômicos devem ser livres para produzir e para colocar os produtos no mercado, o que também implica respeito ao princípio da livre concorrência. Eis uma garantia inerente ao Estado Democrático de Direito.”
Disse ainda o ilustre:
(…) Ao sobrelevar a importância da força normativa do diploma básico, friso a necessidade deste Tribunal concretizar e realizar os preceitos constitucionais de forma ótima, o que se traduz na observância do processo dialético e ininterrupto de condicionamento entre a norma e a realidade. A indiferença quanto a esses princípios hermenêuticos pode ocasionar um recorte drástico e indesejado, considerados o dispositivo constitucional e a realidade, configurando-se o que Pablo Lucas Verdú convencionou chamar de ‘mutação constitucional’, hipótese em que a carta constitucional fica obsoleta, fragilizada, caduca. (…) Cabe ao intérprete, no caso, proceder a uma interpretação evolutiva, reconhecendo que essas ‘mutações constitucionais silenciosas’ funcionam, na verdade, como atos legítimos de interpretação constitucional.”
Livre iniciativa: um propósito
Assim, o futuro do ambiente político, econômico e jurídico do país passa pelo respeito à da livre iniciativa. Como constitucionalmente consagrada, ela garantirá a saúde de serviços públicos e privados. Por fim, o bem da sociedade brasileira.
De fato, um Estado ineficiente, pesado, burocrata, prestador de serviços diretos e interventor é um Estado altamente ineficiente. Pior: ele gera um ambiente econômico e social absurdamente estéril para a atividade econômica. Por meio disso, o próprio Estado acaba por influir negativamente em todos os demais segmentos econômicos, políticos e sociais.
Para arrematar, então, as palavras do brilhante voto do Ministro Marco Aurélio Mello na ADPF 46:
(…) O Estado brasileiro encontrava-se incapaz de prestar zelosa e eficientemente os serviços públicos e desenvolver as atividades econômicas. Fez-se e faz-se ainda necessária a devolução das atividades que ainda são prestadas pelo Poder Público à iniciativa privada.”
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