Se você trabalha com contratos no seu dia a dia, é possível que já tenha ouvido a máxima “o contrato faz lei entre as partes”. Essa é uma boa forma de resumir o que significa o princípio do pacta sunt servanda.
Na prática, o pacta sunt servanda é um princípio não-escrito da teoria dos contratos. Durante muito tempo, o Direito antigo entendeu sua aplicação como absoluta.
Mas, nas relações contratuais atuais e no ordenamento jurídico vigente, o pacta sunt servanda não é mais unanimidade. Outros princípios, como o da função social dos contratos, se sobrepuseram, abrindo margem para situações em que o disposto em contrato deixa de ter força de lei.
Neste artigo, você vai entender o que é o pacta sunt servanda, como ele é aplicado atualmente e quais exceções são admitidas no direito pátrio. Vamos lá?
O que é pacta sunt servanda?
A expressão pacta sunt servanda – do latim, “pactos devem ser respeitados” ou “acordos devem ser cumpridos” – é utilizada para designar um princípio clássico da teoria dos contratos, segundo o qual haveria obrigatoriedade em cumprir o que foi acordado em contrato.
Por esse motivo, o pacta sunt servanda é conhecido também como “princípio da obrigatoriedade” ou “força obrigatória dos contratos”.
Muitos juristas, na tentativa de sumarizar o que significa o princípio do pacta sunt servanda, costumam afirmar que ele determina que aquilo que foi contratado entre duas ou mais partes tem força de lei para elas.
O jurista Arnaldo Rizzardo traduz essa ideia pela sentença: “é irredutível o acordo de vontades, portanto, os contratos devem ser cumpridos pela mesma razão que a lei deve ser obedecida”.
Assim, a ideia de obrigatoriedade resumida no pacta sunt servanda se soma a uma lista mais ampla de princípios clássicos dos contratos, ao lado do princípio da autonomia da vontade, do consensualismo, da boa-fé objetiva, entre outros.
Com o passar do tempo e a evolução dos textos legais e do ordenamento jurídico como um todo, outros princípios – como o da função social do contrato – acabaram gerando controvérsia e, em certo sentido, estabeleceram limites para o pacta sunt servanda.
A formação desse princípio e sua aplicação ao longo da história do Direito é o que veremos a seguir.
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História do princípio de pacta sunt servanda
O surgimento histórico do pacta sunt servanda se confunde, em parte, com o surgimento dos contratos. É consenso entre os historiadores que formas primitivas de relação contratual existiam em sociedades antigas, sobretudo na Grécia Antiga e no Egito.
Essas primeiras formas contratuais incorporavam elementos ritualísticos e não envolviam necessariamente a formalização. Estavam quase sempre relacionadas a eventos da vida humana, como o casamento, ou a transação de bens materiais (objetos de valor, embarcações, etc).
É com o Direito Romano antigo, sobretudo nos períodos clássicos e Justiniano, que se desenvolve uma fórmula contratual mais próxima daquela que utilizamos hoje. É o direito romano que, pela primeira vez, estabelece a diferença entre convenção, pacto e contrato.
Assim, é nesse período que se difunde uma compreensão dos contratos como instrumentos reconhecidos pelo direito e capazes de gerar sobre as partes uma “força obrigatória”.
Contudo, para o jurista brasileiro Caio Mário da Silva Pereira, é apenas na Idade Média que o princípio do pacta sunt servanda se consolida como tal. É nesse período histórico que a obrigação gerada pelos contratos ganha um sentido quase espiritual, e sua quebra tem conotação de pecado.
Nas sociedades modernas, com o advento dos movimentos iluministas – que valorizavam sobretudo a razão humana – e com a posterior Revolução Industrial, a força da autonomia da vontade ganha espaço e a normatização da obrigatoriedade firmada pelo contrato se consolida.
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A introdução do pacta sunt servanda no direito brasileiro
Conforme o capitalismo se torna o sistema dominante na maior parte do globo, a industrialização e as trocas comerciais se fortalecem.
No Brasil e no mundo, o contrato deixa de ser um ritual personalizado, entre duas ou mais partes, e torna-se um elemento de massa – principalmente por meio dos contratos por adesão.
É nessa época que a preservação dos interesses coletivos e a ideia de “função social” dos contratos começa a ganhar espaço, como veremos a seguir. Por ora, importa entender que no Brasil, essa visão só se consolidou muito mais tarde.
Isso porque, no Código Civil de 1916, a presença do pacta sunt servanda ainda é preponderante. A sociedade brasileira da época, que ensaiava movimentos de industrialização, valorizava a ótica individualista e mercantilista, ao que a ideia de obrigatoriedade entre as partes, traduzida no pacta sunt servanda, era extremamente adequada.
No Brasil, é apenas com a aprovação da Constituição Federal de 1988 e, mais recentemente, do Código Civil de 2002, que o pacta sunt servanda começa a perder força. Na prática, sua aplicação é relativizada frente à função social dos contratos.
É sobre a contribuição desses dois dispositivos legais (CF e CC) que falaremos a seguir.
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Como vimos, embora seja um princípio basilar para o funcionamento dos contratos enquanto acordo de vontades, o pacta sunt servanda vai gradualmente sendo reinterpretado, à medida que ganha força o entendimento acerca da função social dos contratos.
Mas, o que é essa função social? Como ela se manifesta no ordenamento jurídico brasileiro? E, como se constrói a dicotomia entre função social dos contratos e o princípio da obrigatoriedade (pacta sunt servanda)?
Essas respostas podem ser encontradas na análise da Constituição Federal de 1988 e também no Código Civil de 2002, conforme segue.
A ideia de “função social” está diretamente ligada a um entendimento jurídico que recepciona o interesse geral, em detrimento do interesse individual. Essa concepção ganha espaço sobretudo a partir da aprovação da Constituição Federal (CF) de 1988.
É na CF que encontramos uma primeira menção mais clara à relevância da função social. In verbis:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[…]
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;
Apesar da contribuição da CF, a carta magna não define propriamente o que é a função social, tampouco faz relação direta aos contratos, dando margem a uma série de interpretações. É apenas com a nova redação do Código Civil que se avançará neste tema.
O Código Civil tem papel fundamental na reorganização do ordenamento jurídico em matéria de princípios contratuais. É no Código Civil de 2002 que encontramos uma defesa mais clara da função social dos contratos, sobretudo no Art. 421, onde se lê:
Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual
Importa destacar que essa redação (incluindo o parágrafo único) foi trazida ao CC por meio da Lei da Liberdade Econômica, de 2019. Anteriormente, vigorava a fórmula “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.
Na prática, no entanto, a função social dos contratos segue como uma limitadora ao princípio da pacta sunt servanda. Significa dizer, portanto, que o legislador optou por priorizar a inclusão de um limite à liberdade contratual, no intuito de garantir o interesse social.
Com isso, embora a obrigatoriedade de cumprimento do acordado em contrato ainda possa ter força e natureza de lei entre as partes, o ordenamento passa a considerar também os direitos e garantias de terceiros – não diretamente envolvidos no instrumento contratual.
E é assim que algumas exceções ao pacta sunt servanda passam a ser admitidas. Vejamos quais são elas, na próxima seção.
Exceções ao pacta sunt servanda
O pacta sunt servanda não é um princípio contratual absoluto. Existem situações em que as obrigações acordadas podem ser alteradas ou revistas.
Vejamos quais são essas situações de exceção ao princípio da obrigatoriedade?
– Desequilíbrio contratual
O desequilíbrio contratual pode resultar na anulação do princípio de pacta sunt servanda, e na consequente resolução ou alteração de contrato. Mas, o que caracteriza o desequilíbrio contratual?
A hipótese mais usual é a de onerosidade excessiva, prevista no Código Civil. Há desequilíbrio contratual quando uma das partes que está obrigada é excessivamente onerada. De acordo com o CC:
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.
Cabe ressaltar que a onerosidade excessiva – que leva a uma condição de desigualdade contratual e à consequente possibilidade de quebra do pacta sunt servanda – não está dada no momento em que as partes firmam o acordo de vontades.
Como o texto do CC deixa claro, trata-se de um cenário que se estabelece com o passar do tempo, “ em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis”.
– Revisão contratual
Mais uma vez, quando há modificação das condições fáticas ao longo do tempo, é possível que as partes procedam à revisão contratual, alterando as obrigações originalmente fixadas.
Contudo, desde a edição da Lei de Liberdade Econômica, e a consequente alteração do Art. 421 do Código Civil, a revisão contratual tem limitações:
Art. 421 […]
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.
E, para além, no Art. 421-A, também incluído pela Lei 13.874/19:
Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:
[…]
III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.
Logo, a revisão contratual ganha um caráter de excepcionalidade. Nem por isso, perde validade.
– Casos que relativizam o princípio, por força de lei
Atualmente, o pacta sunt servanda se aplica como princípio contratual apenas na medida em que não infringe a legislação vigente. Quando há previsão legal em sentido contrário, o princípio da obrigatoriedade dos contratos é obliterado pelo pelo texto da lei.
Um exemplo em que ocorre a relativização do pacta sunt servanda é nas relações consumeristas, por força do disposto no Código de Defesa do Consumidor:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
[…]
V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;
Importa destacar, no entanto, que a relativização do princípio – que pode levar a revisão contratual – é um movimento complementar. Ela não anula por completo nem desobriga automaticamente as partes, em relação ao cumprimento das obrigações firmadas em contrato.
– Contratos que contém a cláusula rebus sic stantibus
A quarta e última hipótese de exceção ao pacta sunt servanda ocorre quando há, em contrato, uma cláusula do tipo rebus sic stantibus.
A “rebus sic stantibus”, em tradução livre do latim, significa “estando assim as coisas”. Ela resume uma concepção mais antiga no Direito, chamada de “teoria da imprevisibilidade”.
Na prática, a cláusula de rebus sic stantibus determina que as obrigações do contrato são válidas, e têm força de lei, apenas se não houver uma mudança imprevista ou relativamente imprevisível, que venha a alterar as condições contratuais.
Se esse evento, condição ou fato imprevisível se abater sobre as circunstâncias de execução do contrato, a cláusula rebus sic stantibus permite a inexigibilidade das obrigações, ou a exigibilidade diversa.
Em outras palavras, permite que haja, ou a resolução do contrato, ou a revisão contratual.
Se você está se perguntando que tipos de situações atendem a ideia de imprevisibilidade exigida pela rebus suc stantibus, um bom exemplo é a pandemia da Covid-19.
Evidentemente, o julgador precisa analisar caso a caso, mas situações de pandemia, guerra e intempéries podem atender às condições de imprevisão.
Perguntas frequentes
O princípio pacta sunt servanda, também chamado de princípio da obrigatoriedade, nada mais é que um princípio clássico da teoria dos contratos. Ele estabelece que um contrato tem o poder de criar obrigações com força de lei, para as partes a ele submetidas.
O Art. 421 do Código Civil recebeu nova redação a partir da aprovação da Lei de Liberdade Econômica, em 2019. Desde então, o caput do artigo prevê que “a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato”. Quer dizer, portanto, que a liberdade de pactuação e a obrigatoriedade de cumprimento do disposto em contrato não podem infringir o direito e os interesses coletivos.
Conclusão
Frente ao exposto neste artigo, fica claro que o pacta sunt servanda ainda é um princípio basilar para a teoria dos contratos. Mas, seus efeitos e sua aplicação não são absolutos. Como vimos, há situações de exceção em que deve prevalecer o interesse coletivo e o disposto em lei.
Por isso, é fundamental que, ao redigir os contratos, empresas e pessoas físicas tenham em mente esse princípio – e as possibilidades de relativização dele. Assim, você pode prever riscos e aumentar a segurança jurídica do negócio.
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bom dia Doutor.
Muito bom seu texto. Sempre gostei muito deste principio.
Tentarei aplica-lo em uma resposta a peça de embargo a execução, aonde o cliente deixou de observar as duas assinaturas de testemunhas na confissão de divida…o advogado da parte contraria, logico, soltou o verbo, mais depois de 15 parcelas pagas…vou aplicar esse tema…
um forte abraço.
Parabéns!!! Simples, direto e suficiente para a compreensão da matéria.