Diz-se no Direito de Família que no início do casamento o tratamento entre os consortes é de “meu Bem pra cá, meu Bem pra lá”, já quando do término ‘meus bens pra cá, meu Bem pra lá”. A sutil mudança e os destaques nos termos da oração, na verdade denotam uma situação que representa uma dura realidade no rotina das pessoas que decidem por fim ao casamento: o momento da partilha dos bens do casal. Dentre esse bens, talvez o que gere maior dificuldades e dúvidas seja a partilha de cotas sociais pertencentes aos cônjuges.
Isso porque, ao lado da sociedade conjugal formada entre os consortes, por meio de um contrato solene, existe a sociedade empresarial formada entre os sócios também através de um contrato solene (a expressão sociedade empresarial é adotada neste texto em sentido amplo, incluindo todas as espécies de sociedades, simples, empresarial etc.).
Dada a autonomia e completa dissociação entre a sociedade empresarial e a conjugal, o término desta por óbvio não tem o condão de por fim àquela. Todavia, as cotas sociais dos cônjuges divorciandos devem ser partilhadas observando-se as regras atinentes a cada um dos regimes de bens. Importante ainda consignar que o cônjuge não é sócio, portanto, em caso de dissolução da relação conjugal não terá direito de ingressar na sociedade, exceto, claro, se houver a anuência de todos os sócios, inclusive do próprio cônjuge detentor originário das cotas, em homenagem a affectio societatis.
Nesse diapasão, ocupou-se o presente texto em analisar as regras atinentes a partilha de cotas sociais no regime da comunhão parcial de bens e sua disciplina pelo Novo CPC. Na prática, o que se vê é bastante desatenção por boa parcela dos operadores do direito (inclusos advogados, defensores públicos, juízes etc.), que relegam a aplicação de tais regras que ora se exporá, o que requer dos presentes leitores bastante acuidade quando da atuação em casos semelhantes a fim de não incorrerem na mesma imperícia.
Em que pese se tratar de tema preponderantemente afeto ao direito de família é certo que as regras para solução do caso perpassam pelo direito empresarial.
Como dito alhures, na prática forense, quando do divórcio, o que se verifica é que a maior parte dos operadores do direito, seja na qualidade de representante do autor ou representante do réu, costumam requerer a partilha de cotas sociais adquiridas na constância do casamento pelo seu valor nominal, isto é, pelo valor do capital social da empresa informado no contrato social constitutivo ou consolidado da mesma. Apesar da prática habitual, não é o que a lei prevê!
Como é de praxe no direito, a solução para o caso não tem regra expressamente clara no texto, se assim o fosse, inexistiria o equívoco acima apontado. A solução parte de uma interpretação integrativa da lei e jurisprudência.
O artigo 1.027 do Código Civil, assim estabelece:
Art. 1.027. Os herdeiros do cônjuge de sócio, ou o cônjuge do que se separou judicialmente, não podem exigir desde logo a parte que lhes couber na quota social, mas concorrer à divisão periódica dos lucros, até que se liquide a sociedade.
Consoante já exposto, a dissolução da sociedade conjugal não afeta a sociedade empresarial, nem poderia, haja vista a função social da empresa lato sensu. Desta forma requerer a partilha de cotas sociais por meio da divisão seria o mesmo que comprometer as atividades da sociedade, mormente se levarmos em consideração o porte da sociedade e o montante das cotas a serem partilhados.
É por isso que o art. 1.027 do Código Civil estabelece que o cônjuge do sócio que se separar judicialmente não pode lhe exigir a imediata partilha de cotas sociais que lhe couber, mas tem o direito de concorrer à divisão periódica dos lucros até que a sociedade se extinga.
Trocando em miúdos o que o Código Civil quis foi justamente conservar a manutenção da empresa, evitando-se com isso que todas as vezes que um sócio se divorciar tenha que imediatamente liquidar (apurar/avaliar) suas cotas e vendê-las a fim de entregar o valor da partilha ao cônjuge.
Muitos cenários possíveis podem ocorrer quando um sócio se divorcia. Num cenário mais favorável pode ser que o sócio divorciando tenha capital suficiente para apurar o valor de suas cotas e simplesmente indenizar o seu ex-cônjuge. Mas pode ser que o sócio divorciando não tenha capital suficiente para indenizar seu ex-cônjuge, os cenários possíveis então seriam:
É por isso que a lei estabelece o direito do cônjuge de concorrer à divisão periódica dos lucros, na proporção das cotas a que teria direito na partilha, até que se liquide (encerre) a sociedade.
Contudo, na prática, a solução trazida pela Lei desborda em outra problemática, pois cria uma relação temporal indefinida da sociedade para com o terceiro, neste caso o ex-cônjuge do sócio. É que, conforme exposto, a participação do ex-cônjuge nos lucros da sociedade perdura até que a sociedade se liquide, ocorre que por vezes, no cenário empresarial, as sociedades duram anos a fio e as vezes transmitem-se de gerações a gerações.
Desta forma, o rompimento da affectio maritalis acabaria por irromper, mesmo que indiretamente, na affectio societatis, vez que se criaria uma condição de sub-sócio do ex-cônjuge ao permitir que este participasse indefinidamente da divisão periódica dos lucros da sociedade, conferindo-lhe legitimidade para questionar as contas e a prática de eventuais atos societários.
Assim, apesar da regra estatuída no art. 1.027 do Código Civil, é comum que a longo prazo o ex-cônjuge que tem direito a concorrer à divisão periódica dos lucros em face do divórcio, acabe por se retirar da sociedade, devendo para isso ser indenizado no valor correspondente que tem direito na partilha de cotas sociais. Todavia tal situação não encontrava regramento legal e quando feita se dava por consenso e deliberação entre as partes que geralmente valiam-se do judiciário apenas para homologar o acordo por sentença.
O Novo CPC (Lei n. 13.105/15) atento a isso instituiu o procedimento especial de dissolução parcial de sociedade, que em seu artigo 600, parágrafo único, confere legitimidade ao cônjuge ou companheiro do sócio para requerer a apuração de seus haveres na sociedade, pagos na proporção de suas cotas sociais, vide regramento:
CAPÍTULO V – DA AÇÃO DE DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE
Art. 600. A ação pode ser proposta:
(…)
Parágrafo único. O cônjuge ou companheiro do sócio cujo casamento, união estável ou convivência terminou poderá requerer a apuração de seus haveres na sociedade, que serão pagos à conta da quota social titulada por este sócio.
Destarte, o que antes acontecia na prática agora foi regulamentado pelo novo Código de Processo Civil. É certo que bastante atenção merece por parte dos causídicos quanto à referida “apuração de haveres”, procedimento técnico que avalia o montante devido ao sócio que se retira da sociedade, semelhante à disciplina que já era regulamentada pelo Código Civil quando da dissolução parcial da sociedade (art. 1.031, CC).
A depender do capital e do porte da sociedade referida apuração deverá ser feita por profissional com qualificação técnica para tanto (advogado, contabilista etc.) que deverá proceder ao levantamento patrimonial da empresa ajustando-os aos critérios que melhor correspondam ao valor real de cada cota social, utilizando-se dos procedimentos próprios para isso como o de fluxo de caixa descontado etc., o que poderá ser melhor analisado em outro artigo.
Em suma, viu-se que o art. 1.027 do Código Civil quis, em homenagem ao princípio da função social da empresa, evitar a imediata partilha de cotas sociais adquiridas sob o regime da comunhão parcial de bens, a fim de não prejudicar a manutenção da sociedade, portanto, postergou a partilha dos bens quando da liquidação definitiva da sociedade, concedendo o direito ao ex-cônjuge do sócio de concorrer à divisão periódica dos lucros até que a sociedade se extinga.
Apesar disso, na prática, via-se que sócios, a médio e longo prazo, preferiam indenizar o ex-cônjuge do sócio no valor correspondente as suas cotas na partilha, referida situação quedava-se no campo prático sem regulação da matéria. O Novo Código de Processo Civil, no entanto, atento a referida situação conferiu expressa legitimidade ativa ao ex-cônjuge do sócio, no parágrafo único, do seu art. 600 a fim de que este possa propor ação de dissolução parcial de sociedade com escopo de requerer sua apuração de haveres na sociedade, pagos proporcionalmente ao valor a que teria direito na partilha de cotas sociais.
Por fim, apenas destaque-se que todas as regras aqui mencionadas, mutatis mutandis, aplicam-se a união estável que, apesar de não exigir forma contratual solene para sua formação, trata-se de regime regulado pelo Código Civil e amplamente consolidado na jurisprudência.
Artigo produzido por Marcos Felipe Macedo. Graduado em Direito pela Universo-GO e Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio de São Paulo, inscrito na OAB-GO n. 43.912. Sócio do escritório Macedo & Andrade Advogados Associados, com atuação profissional no preventivo e contencioso Tributário e Empresarial.
Referências:
– RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial esquematizado / André Luiz Santa Cruz Ramos. – 6. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo : MÉTODO, 2016.
– ASSIS, Araken de; Et. al. Direito processual empresarial: estudos em homenagem ao professor Manoel de Queiroz Pereira Calças / Gilberto Gomes Bruschi (coords.). Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
– MADALENO, Rolf. Direito de família / Rolf Madaleno. – 7.ª ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2017.
– TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 5 : Direito de Família / Flávio Tartuce. – 12. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2017.