Embora o Código de Defesa do Consumidor brasileiro seja super elaborado, falhas na prestação de serviço continuam acontecendo. A princípio, as práticas comerciais abusivas e a propaganda enganosa são corriqueiras no cotidiano de todos nós.
Inegavelmente, a legislação brasileira é farta e tenta punir, a todo tempo, esse tipo de conduta. Aliás, o Código Civil estabelece, no art. 113, que as práticas comerciais devem ser observadas de acordo com a boa-fé e uso do lugar de sua celebração. Por óbvio, coibir condutas que violam a boa-fé já é, assim, uma preocupação do nosso legislador.
E por falar na boa-fé objetiva, vale relembrar que ela é, basicamente, a exigência de conduta leal dos contratantes. Assim sendo, está relacionada com os deveres anexos de conduta. São eles: dever de cuidado em relação à outra parte negocial; dever de respeito; dever de informar a outra parte sobre o conteúdo do negócio; dever de agir conforme a confiança depositada; dever de lealdade e probidade; dever de colaboração; dever de agir com honestidade; e dever de agir conforme a razoabilidade, equidade e boa razão.
Já pensou se todos os contratos consumeristas observassem esses deveres? É esse o mandamento do art. 422 do Código Civil: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.
Práticas comerciais abusivas e relações de consumo
Compreendemos que toda prática que fere os princípios basilares que regem as relações consumeristas, como a propaganda enganosa, por exemplo, pode ser considerada como abusiva. Isso significa, portanto, que não devemos nos apegar no rol do art. 39 do CDC, exemplificativo acerca das práticas comerciais abusivas e, por isso, aberto:
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
1. condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;
2. recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de suas disponibilidades de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos e costumes;
3. enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto, ou fornecer qualquer serviço;
4. prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços;
5. exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;
6. executar serviços sem a prévia elaboração de orçamento e autorização expressa do consumidor, ressalvadas as decorrentes de práticas anteriores entre as partes;
Parágrafo único. Os serviços prestados e os produtos remetidos ou entregues ao consumidor, na hipótese prevista no inciso III, equiparam-se às amostras grátis, inexistindo obrigação de pagamento.
Dentre os incisos acima trazidos, vale a pena destacarmos alguns, mostrando jurisprudências a respeito de cada um deles.
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Venda casada no Direito Brasileiro
O primeiro inciso traz como uma das práticas comerciais abusivas “condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos”. É a famosa venda casada! Nesse sentido, o que se proíbe é que o fornecedor condicione a venda de um produto a outro produto. Por exemplo, a oferta de empréstimo bancário (mútuo feneratício) condicionada à venda de um seguro.
O STJ já tem entendimento pacificado a esse respeito:
[…]3. A denominada ‘venda casada’, sob esse enfoque, tem como ratio essendi da vedação a proibição imposta ao fornecedor de, utilizando de sua superioridade econômica ou técnica, opor-se à liberdade de escolha do consumidor entre os produtos e serviços de qualidade satisfatório e preços competitivos.
4. Ao fornecedor de produtos ou serviços, consectariamente, não é lícito, dentre outras práticas abusivas, condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço (art. 39, I do CDC).
5. A prática abusiva revela-se patente se a empresa cinematográfica permite a entrada de produtos adquiridos na suas dependências e interdita o adquirido alhures, engendrando por via oblíqua a cognominada ‘venda casada‘, interdição inextensível ao estabelecimento cuja venda de produtos alimentícios constituiu a essência da sua atividade comercial como, verbi gratia, os bares e restaurantes. […]
(STJ , 1ª Turma, REsp: 744602 RJ 2005/0067467-0, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 01/03/2007, publicado em 15/03/2007)
Princípio da autonomia da vontade do consumidor frente às práticas comerciais abusivas
Outrossim, ainda cerca das práticas comerciais abusivas, vale destacar o inciso III: “enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto, ou fornecer qualquer serviço”.
Aqui, o Código Consumerista valoriza o princípio da autonomia da vontade do consumidor. Dessa forma, deve expressamente autorizar ou solicitar determinado produto ou serviço. Não raras vezes, por exemplo, alguns fornecedores de serviços bancários enviam cartões de créditos sem que os consumidores solicitem. Essa prática já foi tema de discussão do STJ:
[…]II – O envio de cartão de crédito não solicitado, conduta considerada pelo Código de Defesa do Consumidor como prática abusiva (art. 39, III), adicionado aos incômodos decorrentes das providências notoriamente dificultosas para o cancelamento cartão causam dano moral ao consumidor, mormente em se tratando de pessoa de idade avançada, próxima dos cem anos de idade à época dos fatos, circunstância que agrava o sofrimento moral. Recurso Especial não conhecido.(STJ, 3ª Turma, REsp: 1061500 RS 2008/0119719-3, Rel. Min. Sidnei Beneti, julgado em 04/11/2008, publicado em 20/11/2008)
Nesse sentido, vale a pena dar destaque especial ao parágrafo único do art. 39 do CDC. Ou seja, os serviços prestados e os produtos remetidos ou entregues ao consumidor, nesses casos, são equiparados às amostras grátis, inexistindo obrigação de pagamento.
Proteção aos consumidores diante das práticas comerciais abusivas
O inciso IV do art. 39 do CDC trata como uma das práticas comerciais abusivas o ato de se prevalecer da fraqueza ou ignorância do consumidor. Isto é, leva em conta idade, saúde, conhecimento ou condição social, já foi tema de outro artigo aqui no PROJURIS ADV.
Em suma, traz basicamente a hipervulnerabilidade do consumidor. Ou seja, é uma proteção ainda maior àqueles fragilizados devido às condições citadas (idade, saúde, conhecimento ou condição social). Vulneráveis todos os consumidores são, mas existem consumidores que merecem especial atenção, sendo tratados como hipervulneráveis. E a partir dessa concepção, podemos entrar, assim, no tema da propaganda enganosa.
Onerosidade excessiva
Por fim, o inciso V do art. 39 do CDC fala sobre a onerosidade excessiva nas práticas comerciais abusivas. Dessa forma, o que exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva se enquadra como prática abusiva. Ao propósito, traz-se dois Enunciados das Jornadas de Direito Civil do CJF que falam a respeito:
Enunciado 22: A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas.
Enunciado 176: Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual.
Nulidade das cláusulas abusivas
Ainda, o Código de Defesa do Consumidor trata da nulidade das cláusulas abusivas.E, portanto, práticas comerciais abusivas verificadas, sobremaneira, em contratos de adesão. Nesse viés, vale a pena relembrar que há forte diálogo das fontes entre o Código Civil e o CDC. De um lado, o CDC estabelece que:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
I – Impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis; […]
Por outro lado, o Código Civil estabelece que:
Art. 166 CC: É nulo o negócio jurídico quando:
VII – a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.
Conclusão
Em suma, percebe-se que tanto no CDC, quanto no Código Civil, há um forte zelo em coibir as práticas abusivas. Ou seja, que nada mais são do que violação aos deveres anexos de conduta. Essas violações nos levam, diretamente, à propaganda enganosa e abusiva, mas esse tema fica para nosso próximo texto.
Até lá!
Referências
- BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 8.078, de 11 de novembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Portal da Legislação, Brasília, set. 1990. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm >. Acesso em: 17 dez. 2019.
- DE SOUZA, Juliana Rodrigues. Black Friday ou Black Fraude: o que você precisa saber. PROJURIS ADV, 2018. Disponível em:< https://www.projuris.com.br/black-friday-o-que-voce-precisa-saber/ >. Acesso em: 17 dez. 2019.
- CASTRO, Luana. Direito de Arrependimento: como funciona o artigo 49 do CDC. PROJURIS ADV, 2016. Disponível em:< https://www.projuris.com.br/direito-de-arrependimento/ >. Acesso em: 17 dez. 2019.
- BRASIL, Rafael. Relação de consumo: fato e vício do produto e do serviço. PROJURIS ADV, 2018. Disponível em:< https://www.projuris.com.br/relacao-de-consumo/ >. Acesso em: 17 dez. 2019.