O princípio da insignificância é um mecanismo importante para a firmação do direito penal como direito subsidiário, a ser aplicado em última instância sobre o comportamento ilícito do autor, reafirmando o caráter positivista dos princípios que o fundamentam.
O princípio da insignificância ou da bagatela é um mecanismo importante para o direito penal brasileiro, uma vez que possibilita a análise concreta do caso, possibilitando que um delito não seja enquadrado como crime quando a sua consequência é insignificante.
Neste artigo, abordaremos questões fundamentais da aplicação do princípio da insignificância, explicando o que ele é, quais são os requisitos e quais são as suas aplicações, observando casos concretos da jurisprudência. Boa leitura!
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O princípio da insignificância, também conhecido como princípio da bagatela, é um princípio jurídico, aplicado ao direito penal, que tem como objetivo afastar a tipicidade penal de um delito cometido.
Isso significa descaracterizar um ato que, ao levar a lei ao pé da letra, seria compreendido como crime, mas, por ter impacto insignificante, é destituído de sua tipicidade, isentando o autor da ação de pena.
Ele é um princípio que não está disposto em legislação específica. Portanto, é utilizado enquanto ferramenta do direito penal a partir da jurisprudência originada em torno de situações que se enquadrem no princípio.
O princípio da insignificância se apoia, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, sobre outro princípio: o da intervenção mínima. Este estabelece que o direito penal só deve ser aplicado como última possibilidade, impedindo que o Estado exerça poder punitivista sobre a sociedade.
Dessa forma, deve-se tentar resolver a conduta ilícita de outras formas que não a penal, usando o poder punitivo do Estado, no que trata o encarceramento e a privação de liberdade, em última instância.
O princípio da insignificância ou bagatela, portanto, descaracteriza a tipicidade penal de um ato que é insignificante aos olhos do Poder Judiciário, tornando a pena prevista para o mesmo muito desproporcional com as consequências do ato praticado.
Para explicar a aplicação do princípio da insignificância e, com isso, seu propósito, considere a seguinte situação: um trabalhador de um escritório pega para si uma caneta da empresa sem que ninguém saiba ou veja.
Essa ação pode ser configurada como furto, tipificado no Código Penal brasileiro no artigo 155:
“Art. 155 – Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 1º – A pena aumenta-se de um terço, se o crime é praticado durante o repouso noturno.
§ 2º – Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa.
§ 3º – Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico”.
Porém, é insensato aplicar uma pena de reclusão de um a quatro anos, além de multa, a alguém que furtou uma caneta. Trata-se de um ato insignificante, que não causa dano formal ou material a ninguém e nada.
Dessa forma, seria aplicado o princípio da insignificância ao caso, visto que a pena estabelecida para o ato cometido não teria um peso justo com relação ao crime cometido. O crime de bagatela, portanto, seria desprovido de tipificação, livrando o autor de punição.
O princípio da insignificância ou da bagatela é um dos princípios do Direito Penal e integra um dos elementos do crime, pela perspectiva de Guilherme Nucci. Segundo o autor [1]:
Após a Segunda Grande Guerra, novos estudos de Direito Penal provocaram o surgimento do movimento denominado de nova defesa social. Segundo lição de Oswaldo Henrique Duek Marques, afasta-se do positivismo e volta a afirmar o livre-arbítrio como fundamento da imputabilidade, demonstrando que o crime é expressão de uma personalidade única, impossível de haver a padronização sugerida pela escola fundada por Lombroso. A nova defesa social reconhece que a prisão é um mal necessário, embora possua inúmeras consequências negativas, devendo-se, no entanto, abolir a pena de morte. Prega, ainda, a descriminalização de certas condutas, especialmente aquelas que são consideradas crimes de bagatela, evitando-se o encarceramento indiscriminado.
O Direito Penal deve atuar como última alternativa diante dos fatos e não como a busca principal – do contrário, viver-se-ia pela pretensão de vingança. Sendo assim, ignorar o aspecto da insignificância ou da bagatela equivaleria a ensejar o poder punitivo do Estado em força maior que a demandada pelo ato do autor.
Em face disso, a depender da natureza do fato, os prejuízos ocasionados podem ser considerados ínfimos ou insignificante. E, desse modo, incidir o princípio da bagatela para absolvição do réu.
Nessa perspectiva, dispõe, então, o art. 59 do Código Penal:
Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:
Ainda, na seara penal, o princípio da insignificância é um preceito que depende do preenchimento de quatro condições essenciais para ser aplicado:
A aplicação do princípio da insignificância no Direito Penal exige uma análise da relação entre a conduta do réu e os seus resultados, como já ressaltado. Consequentemente, influencia na questão da tipicidade, um dos elementos do crime. Pela teoria do delito, um crime punível deve perseguir, portanto, os três requisitos:
Segundo o Superior Tribunal de Justiça:
A admissão da ocorrência de um crime de bagatela reflete o entendimento de que o Direito Penal deve intervir somente nos casos em que a conduta ocasione lesão jurídica de certa gravidade, devendo ser reconhecida a atipicidade material de perturbações jurídicas mínimas ou leves, estas consideradas não só no seu sentido econômico, mas também em função do grau de afetação da ordem social que ocasionem.
(STJ, 5ª Turma, AgRg no HC 480.413/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 21/02/2019, publicado 01/03/2019)
Conforme vislumbrado, pela teoria do delito, um fato precisa ser típico, antijurídico e imputável para que seja punível. Mas o que significa isto?
Trata-se, na verdade, de uma perspectiva analítica do crime. Assim, é preciso compreender que o fato somente será punível se:
Dentro da teoria que embasa o direito penal brasileiro, há a teoria do delito, que configura as situações que definem os critérios para se identificar se uma ação é um delito (portanto criminosa) ou não.
Para se configurar um delito, é necessário que a ação tenha três substratos distintos: tipicidade (a conduta precisa estar normalizada enquanto criminosa por lei), antijuridicidade (a conduta está em contrariedade com o que estabelece a lei) e a imputabilidade (o autor é culpado pela ação e tem consciência do mesmo).
Esses três critérios precisam ser preenchidos para que se configure um crime ou delito. Mas como o princípio da insignificância exclui a tipicidade se o comportamento insignificante está disposto em lei como criminoso?
Dentro da tipicidade, analisa-se a tipicidade formal e a material. A primeira tem relação com o que a letra da lei apresenta enquanto comportamento que é penalmente tipificado. Já a segunda trata do impacto real da conduta para o afetado, para a coisa, o direito e a sociedade.
Alguém que furta uma caneta (conforme o nosso exemplo anterior) não está causando um dano material de notável impacto ao dono da mesma, como também não está causando um grande impacto à sociedade ou ao direito. Portanto, o crime pode ser considerado insignificante, perdendo sua tipicidade material.
O crime de bagatela, por sua vez, precisa seguir alguns critérios para que se configure como tal, excluindo a tipicidade material do delito e, portanto, enquadrando-o no princípio da insignificância. Os requisitos para tal definição são:
O delito cometido pelo autor não colocou em perigo ou provocou situação de potencial perigo para a sociedade, para as pessoas e para o patrimônio.
O delito causado pelo autor não ofende moral ou fisicamente a pessoa prejudicada e nem a sociedade, fazendo com que a mesma seja inofensiva.
Isso quer dizer que, embora a pessoa tenha cometido um crime, ele não seja reprovado socialmente a ponto de ser significante.
Podemos usar novamente o exemplo do furto da caneta, que embora seja um furto, não é reprovável socialmente, como também podemos dar outro exemplo, de alguém que, em momento de necessidade, furta uma cesta básica de um mercado para alimentar sua família.
O furto de uma cesta básica é maior do que o furto de uma caneta, mas o ato praticado, o de furtar para alimentar a própria família, não é reprovável, uma vez que não causa dano considerável e é realizado por necessidade.
Por último, o ato criminoso deve apresentar inexpressiva lesão jurídica, isso é, ele não deve causar dano expressivo à vida, à integridade física, moral e psicológica das pessoas, aos objetos, ao patrimônio ao à própria proteção jurídica que se dá sobre esses institutos.
O princípio da insignificância, como já abordamos, remove a tipicidade material do ato delituoso, extinguindo, assim, o próprio delito.
De forma prática, isso quer dizer que o efeito que a aplicação do princípio da bagatela a um delito é a absolvição do autor do mesmo, fazendo com o que o seu crime não seja registrado enquanto tal, tirando do sujeito a necessidade de cumprir pena.
Assim, o princípio da insignificância, quando aplicado, extingue o processo penal por compreender que não há crime no que foi cometido.
Há países, onde o princípio da insignificância é aplicado, que mantém o processo criminal sobre o autor, mas apenas não aplica ao mesmo a pena, como é o caso da Alemanha, por exemplo.
Por se tratar de um princípio fundamentado em jurisprudência, as situações onde se aplica ou não o princípio da insignificância mudam com o tempo.
Entretanto, atualmente o Supremo Tribunal Federal (STF) não aplica o princípio a crimes que envolvam tráfico de drogas ou crimes de falsificação, embora já tenham aplicado o princípio em situações de porte de quantidade pequena de drogas.
A aplicação do princípio leva em consideração os quatro requisitos anteriormente apresentados neste artigo, mas também leva em consideração o caso concreto e o autor do ato, como veremos a seguir.
Historicamente, o réu reincidente, ou seja, aquele que já possui uma ficha criminal e já cometeu atos ilícitos no passado, apresentava mais dificuldade ter o princípio da insignificância aplicado a algum delito que se enquadre nos quesitos pedidos.
É o que aparece, por exemplo, na decisão feita pelo ministro do STF Marco Aurélio, em 2009, ao negar o pedido de Habeas Corpus nº 98.944-6 por conta da reincidência criminal da autora, que havia furtado uma caixa de chicletes no valor de R$ 98,90.
Na decisão, o ministro do STF aponta:
“De início, seria dado acolher o pedido de suspensão do que decidido no processo-crime instaurado contra a paciente. Realmente, o prejuízo advindo do furto foi de pequena monta – caixas de goma de mascar avaliadas em R$ 98,80 −, mas, além de não se tratar do denominado furto famélico, nota-se que a paciente já havia incursionado em tal campo, surgindo condenação penal. Em síntese, voltou a claudicar na arte de proceder em sociedade, não cabendo, ao menos nesta fase preliminar, acionar o instituto da bagatela e suspender a eficácia do título executivo judicial condenatório”.
Entretanto, esse tipo de decisão, que optava por não aplicar o princípio da insignificância a um ato criminoso por conta de antecedentes criminais do autor, vem sido mudado na jurisprudência, como aponta a decisão do ministro do STF Gilmar Mendes, em decisão, em abril de 2020, sobre o Habeas Corpus nº 18.138-9.
Nele, o ministro afirmou que “é equivocado afastar sua incidência [do princípio da insignificância] apenas pelo fato de o recorrente possuir antecedentes criminais”.
Dessa forma, a jurisprudência mais atual sobre a aplicação do princípio da insignificância ou bagatela sobre casos onde o réu é reincidente aponta para a aprovação do pedido, independente dos antecedentes do autor.
Ainda acerca do princípio da insignificância, sobretudo no que concerne à reincidência do réu, o STJ decidiu em Habeas Corpus:
HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. NÃO CABIMENTO. FURTO. VALOR DO BEM SUBTRAÍDO INFERIOR A 10% DO SALÁRIO MÍNIMO VIGENTE À ÉPOCA DOS FATOS. RÉU REINCIDENTE ESPECÍFICO E RESPONDE OUTRAS AÇÕES PENAIS POR DELITOS CONTRA O PATRIMÔNIO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO.[…] O furto foi praticado no dia 1º/2/2018, quando o salário mínimo estava fixado em R$ 954,00 (novecentos e cinquenta e quatro reais). Nesse contexto, seguindo a orientação jurisprudencial desta Corte, o valor do bem subtraído, avaliado em R$ 62,00 (sessenta e dois reais), é considerado ínfimo, por não alcançar 10% do salário mínimo vigente à época dos fatos.[…] o furto é um crime de resultado e não de mera conduta e que o direito penal não se destina a punir meras condutas indesejáveis, mas sim, condutas significativamente perigosas, lesivas a bens jurídicos, sob pena de se configurar um direito penal do autor e não do fato.[…] Na linha da orientação jurisprudencial do STF, esta Corte Superior tem admitido a incidência do princípio da insignificância ao reincidente, à míngua de fundamentação sobre a especial reprovabilidade da conduta. Todavia, observa-se que o paciente é reincidente específico e responde a outras ações penais pela prática delitos contra o patrimônio, o que demonstra o elevado grau de reprovabilidade de sua conduta, sendo inaplicável o princípio da insignificância.[…]
(STJ, 5ª Turma, HC 491.970/SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 26/02/2019, publicado em 08/03/2019)
O princípio da insignificância, também conhecido como princípio da bagatela, é um princípio jurídico, aplicado ao direito penal, que tem como objetivo afastar a tipicidade penal de um delito cometido.
Os requisitos para aplicar o princípio da insignificância a algum crime cometido são:
– A ação praticada não apresenta perigo social
– A conduta não é ou é minimamente ofensiva
– O ato praticado é pouco reprovável
– A lesão jurídica é inexpressiva
O princípio da insignificância é aplicado quando a conduta praticada causa uma lesão jurídica inexpressiva, sendo a conduta pouco reprovável, não é ou é minimamente ofensiva, e não representa um perigo social.
O princípio da insignificância é um mecanismo importante para a firmação do direito penal como direito subsidiário, a ser aplicado em última instância sobre o comportamento ilícito do autor, reafirmando o caráter positivista dos princípios que o fundamentam.
Assim sendo, a bagatela é importante para o direito brasileiro e para a sociedade na medida em que não torna o poder punitivo do Estado abusivo, aplicando as penas na medida dos crimes cometidos, analisando os casos concretos ao invés de se firmar na letra dura da lei.
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