No início de março de 2021, a operação Lava Jato e o nome do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltam a se destacar na mídia. A notícia, agora, refere-se a decisão monocrática do Ministro do STF Edson Fachin em pedido de habeas corpus. A reviravolta: a declaração de nulidade das condenações em atenção ao princípio do juiz natural.
O caso é polêmico, sem dúvidas. A operação se desenrola desde 2014 e, desde então, levanta acalorados debates jurídicos e políticos. A intenção do artigo, portanto, não é analisar em mérito a causa, mas a argumentação de Fachin.
Depois de tantos anos e também de anteriores negativas ao pedido, por que declarar a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba? Em primeiro lugar, como ele menciona, a defesa realizou este pedido, em específico, apenas no final de 2020. Em segundo lugar, uma decisão anterior do Supremo Tribunal Federal que evocava a isonomia.
Antes de tudo, no entanto, é preciso entender os desdobramentos jurídicos do princípio do juiz natural. E é isto que você confere neste artigo!
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O princípio do juiz natural é aquele que dispõe haver uma competência jurisdicional para cada caso, conforme sua natureza e circunstâncias, vedada a ocorrência de juízo ou tribunais de exceção, nos moldes do art. 5º, inciso XXXVII, da Constituição Federal.
O tribunal do exceção, por sua vez, é um juízo excepcional. Ou seja, juízo que não possui competência em conformidade à lei ou, por razões de Direito, permite-se como forma de justiça especial, como foi o caso do Tribunal de Nuremberg. Há uma diferença, contudo, entre se autorizar a formação de um juízo especial e permitir o julgamento por juízo incompetente, o que também incorre em juízo de exceção.
Embora não seja incomum vermos a discussão sobre a competência do juízo (vale a pena entender, por exemplo, sobre a litispendência), o Direito necessita dessa certeza de a quem cabe julgamento. E se lei comporta dúvidas, cabe, então, a discussão pelo judiciário, como vemos nas recentes notícias sobre a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin.
Determinar um juiz competente para um julgamento é uma garantia, ademais, ao direito de ter seu processo julgado. Afinal, o juiz competente não pode se negar a julgar um processo de sua competência, exceto quando haja motivos para declarar-se suspeito.
Veja, entretanto, que a incompetência e a suspeição possuem causas e efeitos diversos. E ao longo das entrevistas que tem oferecido nas últimas semanas, o Fachin toca nesses dois institutos do ordenamento jurídico brasileiro. Enquanto a incompetência conduz a uma transferência de foro de julgamento, a suspeição obriga a uma substituição do juiz no julgamento em concreto, sem negar-lhe a competência atribuída naturalmente, pela lei, para julgamento do caso. Mas isto é algo que veremos mais adiante.
Como mencionei e caso você já tenha lido as entrevistas de Fachin, o princípio do juiz natural se difere do princípio da imparcialidade e das regras de suspeição.
O princípio da imparcialidade do juiz determina que o juiz deve agir como parte isenta no processo. Assim, deve promover o direito de defesa e oferecer um julgamento sem que haja benefício próprio.
Para garantir a imparcialidade, existem as regras de suspeição do juiz. Ou seja, quando há motivos para acreditar que outras condições, além dos argumentos e da lei, possam interferir no julgamento, seja por benefício direto (presentes ou interesse na causa em favor de alguém) ou indireto (porque é amigo ou parente das partes ou dos advogados).
Nesses casos, portanto, o juiz deve se declarar suspeito e pedir sua substituição, sob risco de anulação.
Em relação à operação Lava Jato, Fachin defende o princípio do juiz natural, o que alteraria a competência em relação ao julgamento do ex-presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, mas aponta para os riscos do pedido de suspeição contra Moro. Como o ministro do STF aborda em entrevista oferecida ao jornal O Globo [1], em 12 de março de 2021, declarar a suspeição de Sérgio Moro ultrapassa o julgamento de Lula. Declará-lo suspeito pode incorrer, desse modo, na anulação de todas as decisões da operação.
Se para falar de juiz natural é preciso falar de juiz competente, então também se faz preciso entender as regras da competência. Até porque foram elas que determinaram o curso atual da Lava Jato, com envolvimento, inclusivo, de decisões anteriores do STF. Como bem explica Fachin, sua decisão não podia contrariar outra realizada no seio da mesmas discussão, ainda que com polos passivos diversos.
Quais, então, as regras de competência no Direito Brasileiro?
As regras de competência variam de acordo com a área do Direito, Os critérios para a definição da competência, contudo, podem ser:
Ademais, a competência pode ser absoluta ou relativa, em relação à possibilidade de modificação e saneamento da nulidade. Em geral, são competências relativas as relativas ao valor (vide os Juizados Especiais) e as territoriais, embora esta possa ser absoluta nas ações de direito sobre imóveis. Do mesmo modo, são absolutas as competências que decorrem da matéria, da pessoa e a funcional.
Adiante, então, você verá que essa diferença é imprescindível ao desenrolar da Lava Jato.
Analisemos, assim, o que dispõe o CPC/2015, regra geral para o processo civil e subsidiária às demais esferas:
Art. 42. As causas cíveis serão processadas e decididas pelo juiz nos limites de sua competência, ressalvado às partes o direito de instituir juízo arbitral, na forma da lei.
Portanto, há regras de competência, mas também há limites a ela, dentro dos quais o juiz tem o poder de julgamento, ressalvado o direito de juízo arbitral (também dentro dos seus limites, já que nem todas as causas podem ser decididas por ele).
A perpetuação da jurisdição é o princípio que determina que a competência será definida no registro ou distribuição da petição inicial.
Confira a redação do art. 43 do Novo CPC:
Art. 43. Determina-se a competência no momento do registro ou da distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta.
Entretanto, veja, como fica a questão do princípio do juiz natural? Não seria este anterior ao princípio da perpetuação da jurisdição?
O próprio art. 43 do CPC/2015 responde a pergunta. Apesar da regra geral, a competência poderá ser modificada quando suprimir órgão judicial ou se tratar de competência absoluta.
Ocorre, contudo, a possibilidade de que mais de um juízo se declare competente, conforme o princípio do juiz natural, seja porque um possui competência territorial ou funcional, por exemplo.
O Novo CPC dispõe, dessa maneira:
Art. 66. Há conflito de competência quando:
I – 2 (dois) ou mais juízes se declaram competentes;
II – 2 (dois) ou mais juízes se consideram incompetentes, atribuindo um ao outro a competência;
III – entre 2 (dois) ou mais juízes surge controvérsia acerca da reunião ou separação de processos.
Parágrafo único. O juiz que não acolher a competência declinada deverá suscitar o conflito, salvo se a atribuir a outro juízo.
No caso da Lava Jato, por exemplo, há uma questão de competência territorial. De um lado, a alegação de que o julgamento caberia à Justiça Federal do Paraná. De outro, a alegação de que o julgamento caberia à Justiça de Brasília.
Veja, então, o que diz o art. 45 do Novo CPC sobre isso:
Art. 45. Tramitando o processo perante outro juízo, os autos serão remetidos ao juízo federal competente se nele intervier a União, suas empresas públicas, entidades autárquicas e fundações, ou conselho de fiscalização de atividade profissional, na qualidade de parte ou de terceiro interveniente, exceto as ações:
I – de recuperação judicial, falência, insolvência civil e acidente de trabalho;
II – sujeitas à justiça eleitoral e à justiça do trabalho.
Considera-se a operação Lava Jato como uma das maiores investigações de corrupção e lavagem de dinheiro no país. De conhecimento notório, envolveu agentes públicos e empresários em esquemas complexos e com grande volume de dinheiro. Entre as empresas envolvidas estava a Petrobras, maior estatal do Brasil.
O nome do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em resumo, aparece na operação em virtude da acusação de que teria utilizado dinheiro de desvio da Petrobras para reformas em um triplex, fato este que não se pretende aprofundar por ora. A discussão levantada no Habeas Corpus 193726, cuja apreciação pelo Ministro Edson Fachin se deu em março de 2021, através de sua decisão monocrática, entretanto, era sobre a competência para julgamento.
Segundo relatório de Fachin:
Afirmam […] que a hipótese se assemelha ao entendimento firmado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal por
ocasião do julgamento do INQ 4.130 QO, segundo o qual a 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba seria competente apenas para o julgamento dos fatos que vitimaram a Petrobras S/A, sendo imperativa a observância, em relação aos demais, às regras de distribuição da competência jurisdicional previstas no ordenamento jurídico.
Portanto, evocam a tese de que há uma ofensa ao princípio do juiz natural.
Como Fachin explica, embora iniciada na Justiça Federal de Curitiba, a operação tramitou, concomitantemente nesta e no STF, em razão das prerrogativas de cargo dos envolvidos. Durante o curso das ações, inclusive se cogitou a possibilidade de conexão e continência, mas que não foi aprovada. A ação, dessa maneira, seguiu na Justiça Federal de Curitiba.
Em acórdão de 2018 (PET 6664), todavia, o STF decidiu pela transferência de competência, à semelhança da decisão agora em questão, para o Distrito Federal. Isto porque se entendeu que à 13ª Vara Federal de Curitiba caberiam apenas os ilícitos cometidos exclusivamente no âmbito da Petrobras, quando os casos em comento envolviam fatos ocorridos em São Paulo e em Brasília. E por coerência a esta decisão anterior, respeitando-se o princípio do juiz natural, o Min. Fachin declarou a incompetência de Sérgio Moro e a nulidade das decisões proferidas em relação a Lula.
Por fim, como relata em entrevista ao jornal Estado de S. Paulo:
“Por força dos princípios da isonomia e do juiz natural, deve-se garantir o mesmo tratamento e interpretação a todos os investigados em situação análoga, independentemente de quem seja e de qual partido faça parte”.