Apesar de muita gente acreditar que posse e propriedade são a mesma coisa, elas não são. Assim sendo, neste artigo vamos explicar com mais detalhes quais as diferenças entre essas duas definições.
Decerto, não é incomum ouvir de alguém, dotado de um alto nível de empolgação na roda de amigos ou no encontro de família: “Comprei um imóvel somente no ‘contrato’ e estou morando nele, realizei meu sonho da casa própria!”
No entanto, apesar de acreditar ser o proprietário do imóvel, será que essa pessoa, realmente, é o titular da propriedade ou, em verdade, somente exerce a posse sobre o bem?
É nesse ponto, que se torna de grande importância fazer a diferenciação proposta como tema deste breve texto, para que, tendo esse conhecimento, você seja capaz de identificar se, de fato, é o proprietário do lugar onde eventualmente mora.
O que é propriedade para o Direito Civil
Segundo Luiz Antonio Scavone Junior (2018): “O Código Civil não define a propriedade, mas o proprietário, o que faz a partir dos atributos da propriedade. (…) Sendo assim, uma diferença entre posse e propriedade é que a propriedade nada mais é que o direito real de usar, fruir, dispor e reivindicar a coisa sobre a qual recai, respeitando sua função social”.
De acordo com o artigo 1.228 do Código Civil preceitua:
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
Nesse sentido, tendo em vista que não pode ser extraída da Lei uma conceituação clara e específica sobre o que é propriedade, iremos fazer isso a partir das definições das características atinentes à esse direito real, nas palavras do já citado doutrinador Luiz Antonio Scavone Junior (2018), assim:
a) Uso: “Usar significa extrair as vantagens naturais ofertadas pela coisa, extração esta que não importa em alteração de sua substância”. Por exemplo, “ao utilizar uma casa para moradia, o proprietário está utilizando a coisa para o fim que se destina sem alterar-lhe a substância”.
b) Gozo: Gozar ou fruir da propriedade, “é a possibilidade de o proprietário extrair os frutos ou produtos decorrentes da coisa sobre a qual recai o direito de propriedade”. Nesse caso, tem-se como exemplo mais comum a locação do imóvel.
c) Dispor: Dispor “significa dar à coisa o destino que o proprietário achar conveniente”. Portanto, o proprietário pode “consumi-la, destruí-la, aliená-la onerosa ou gratuitamente (venda ou doação), gravá-la com um ônus real (….), ou seja, dar a coisa em garantia constituindo ônus real.
d) Reivindicar: No que tange a esse atributo, é possível dizer que o proprietário poderá “reivindicar a coisa de quem injustamente a detenha ou possua”.
O que é posse?
Dessa maneira, a posse tem lugar no mundo fático e não somente no jurídico, de modo que se revela como uma condição fática de exercício de um dos poderes inerentes à propriedade. É assim que preceitua o artigo 1.196 do Código Civil a seguir:
Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.
Como se vê, ao tratar da posse, a legislação também se ocupa em caracterizar a figura do possuidor. Ademais, salienta-se que a posse pode ser bipartida entre posse direta e indireta, sendo a posse direta a exercida pela pessoa que tem a coisa em seu poder.
No entanto, posse e propriedade podem ser transferidas a outra pessoa. Acerca do desdobramento da posse, colhe-se da doutrina de Sílvio de Salvo Venosa que, o “possuidor indireto é o próprio dono ou assemelhado, que entrega seu bem a outrem. A tradição da coisa faz com que se opere a bipartição da natureza da posse. Possuidor direto ou imediato é o que recebe o bem e tem o contato, a bem dizer, físico com a coisa, (…)”.
Transferência de posse e propriedade
Nesse aspecto, fica nítido que a transmissão da posse não exige grande formalidade, ocorre, pois, com a tradição, ou seja, entrega do bem. Em contrapartida, a transferência da propriedade, como já visto por aqui, depende do registro do título translativo no registro de imóveis (art. 1.245, Código Civil).
Aliás, uma das maiores diferenças entre posse e propriedade se da devido ao valor. Isto é, nos termos do artigo 108 do Código Civil, caso o valor do imóvel seja superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no Brasil, a escritura pública é indispensável para a transmissão da propriedade do bem, veja-se:
Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.
A jurisprudência também se manifestou acerca da impossibilidade de utilizar o instrumento particular de compra e venda para transferir a propriedade de um imóvel, nos casos previstos no artigo mencionado acima.
Manifestação da Jurisprudência acerca da posse e propriedade
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA – CONTRATO PARTICULAR DE DAÇÃO EM PAGAMENTO – IMÓVEL – VALOR SUPERIOR A TRINTA SALÁRIOS MÍNIMOS – ESCRITURA PÚBLICA – NECESSIDADE.
O adquirente de uma unidade imobiliária que realizou o contrato de dação em pagamento com o ora recorrente, não pode ser confundido tampouco comparado com a figura do incorporador, porquanto este tem como característica principal exercer atividade consistente em promover a construção de edificação dividida em unidades autônomas. O artigo 108 do Código Civil prevê expressamente que quando se tratar de negócio jurídico que envolva imóveis com valor superior a trinta vezes o salário mínimo, como se verifica no presente caso, deverá ele ser formalizado por meio de escritura pública. Se o contrato particular de dação em pagamento não atende a formalidade prevista pela lei, não restou apto para registro no cartório imobiliário.
(TJ-MG – AC nº 10000180060683001. Relator: Ângela de Lourdes Rodrigues. Data de Publicação: 28/05/2018).
Aquisição de imóvel por meio de contrato
Desse modo, voltando ao questionamento inicial acerca da diferença entre posse e propriedade, na hipótese de uma pessoa que adquire um imóvel unicamente por meio da celebração de um contrato particular de compromisso de compra e venda, em verdade, não pode ser considerado como proprietário, capaz de exercer todos os atributos da propriedade, mas, tão somente, possuidor da coisa.
“CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS DE TERCEIRO. INSTRUMENTOS PARTICULARES SEM REGISTRO E SEM A MÍNIMA PUBLICAÇÃO. AUSÊNCIA DE POSSE DO EMBARGANTE AO TEMPO DA CONSTRIÇÃO. EXCLUSÃO DA MULTA APLICADA. SENTENÇA REFORMADA. INVERSÃO DO ÔNUS DA SUCUMBÊNCIA.
1. É temerário negociar um imóvel mediante contrato particular sem o menor resquício de publicidade. De fato, se levado em conta que o direito real de propriedade apenas é transmitido com o registro do título translativo no Registro de Imóveis (art. 1.245, § 1º, Código Civil), nada justifica uma negociação imobiliária sem qualquer traço de publicidade (reconhecimento de firma das partes).
2. O instrumento particular sempre servirá de prova irrefutável quanto à data da compra e venda. Se oposto a terceiro que não participou de sua formação (credor penhorante), a datação do instrumento particular deverá obedecer a uma das balizas dispostas no artigo 370 do Código de Processo Civil/73 (art. 409 do NCPC). (…). 7. Sentença reformada. Exclusão da multa aplicada. Inversão do ônus da sucumbência. Apelação provida”.
(TRF-3. Ap nº 00308518020174039999. Relator: Desembargador Federal Hélio Nogueira. Data de Julgamento: 12/02/2019).
Por todo o exposto, é possível concluir que conquanto o contrato particular possa ser considerado um justo título, por representar claramente a vontade das partes em efetuar a compra e venda de um imóvel, ele, por si só, não possui o condão de transferir a propriedade, mas sim a posse.
Comentário da especialista: os efeitos da posse
A advogada Thaís Netto, Professora, Mestra em Direito e Inovação – UFJF e Especialista em Direito Público, explica o que é a posse a partir de algum dos principais estudiosas da área. Vejamos.
Introdução aos efeitos da posse, por Dra. Thaís Netto
“Inicialmente, cabe informar que a posse, nas palavras de Valdemar Luz (2013, p. 282) pode ser entendida como “o exercício pleno ou não de alguns poderes inerentes ao domínio ou à propriedade”. A posse relaciona-se com o poder físico e com a intenção de permanecer com a coisa.
Para Savigny, a posse possui natureza híbrida – fato e direito -, já para Ihering, a posse é um direito, ou seja, um interesse protegido. Segundo Pablo Stolze e Rodolfo Filho (2021) a posse refere-se a uma circunstância fática tutelada pelo Direito e não a um direito real. Válido destacar que a posse não encontra-se disposta no artigo 1.225 do Código Civil de 2002, que elenca os direitos reais.
Conforme indicado no Enunciado nº 492, da V Jornada de Direito Civil, a posse pode ser tida como um direito autônomo em relação à propriedade e deve indicar o aproveitamento dos bens, para alcançar interesses existenciais, sociais e econômicos merecedores de tutela.
O enunciado indicado pauta-se na função social da posse, na medida em que a posse, como bem leciona Stolze e Rodolfo Filho (2021) ultrapassa o pensamento anterior e individualista de simples interesse pessoal para alcançar um plano direcionado à função social. Cumpre informar ainda, que o Código Civil de 2002 adotou a teoria de Ihering, sem desconsiderar a função social da posse.
No que se refere à classificação, pode-se dizer que existem diversas classificações da posse. A classificação trata-se de um tema muito importante, tendo em vista que as diversas classificações podem ser utilizadas na ação de usucapião, assim como, nos interditos possessórios.
De acordo com Flávio Tartuce (2020), a posse pode ser classificada em relação à pessoa-coisa ou ao desdobramento, em relação à presença dos vícios, em relação à boa-fé, em relação à presença de título, em relação ao tempo, em relação aos efeitos.”
Efeitos materiais e processuais da posse
A especialista Thaís Netto segue, para explicar os efeitos materiais e processuais da posse. Conforme segue:
“A posse com relação aos efeitos pode ser posse ad interdicta e posse ad usucapionem.
A primeira é aquela que pode ser defendida por ações possessórias diretas ou interditos possessórios. Nesse caso, tanto o locador quanto o locatário podem defender a posse. A respectiva posse não conduz à usucapião.
A segunda refere-se à exceção à regra, ou seja, é aquela que se prolonga por determinado tempo, “admitindo-se a aquisição da propriedade pela usucapião, desde que obedecidos os parâmetros legais”. A referida posse deve ser mansa, pacífica e duradoura, ininterrupta e com intenção de dono. Outrossim, deve possuir os requisitos de justo título e de boa-fé (TARTUCE, 2020).
Ressalta-se que o Código Civil de 2002, mais precisamente, nos artigos 1.210 a 1.222 traz regras materiais e processuais com relação aos efeitos da posse.
As regras materiais englobam: a percepção dos frutos, dos produtos e suas consequências; a indenização e a retenção das benfeitorias; as responsabilidades; o direito à usucapião.
Com relação à percepção dos frutos, cabe indicar que podem ser classificados: natureza – naturais, industriais e civis -, ligação com a coisa principal – colhidos ou percebidos, pendentes, percipiendos, estantes e consumidos. De acordo com o artigo 1.214 do Código Civil, o possuidor de boa-fé possui direito aos frutos colhidos ou percebidos. No que se refere ao possuidor de má-fé, cabe informar que responde pelos frutos colhidos ou percebidos, bem como, pelos que deixou de perceber.
A benfeitoria trata-se de uma obra realizada com o intuito de conservar, melhorar ou embelezar a coisa. Pode-se dizer que o possuidor de boa-fé tem direito a ser indenizado das benfeitorias úteis e necessárias, assim como, as voluptuárias, caso não sejam pagas, a levantá-las quando puder. O possuidor de boa-fé pode reter o valor das benfeitorias úteis e necessárias, com base no artigo 1.219, do Código Civil de 2002.
Em se tratando da responsabilidade pela perda ou deterioração da coisa, aponta-se que o possuidor de boa-fé não responde pela perda ou deterioração que não provocar, nos termos do artigo 1.217, do Código Civil de 2002.
O possuidor de má-fé, por sua vez, responde pela perda ou deterioração da coisa, ainda que acidentais, exceto se provar que a perda ou deterioração da coisa teriam ocorrido da mesma forma se estivesse com o reivindicante, de acordo com o artigo 1.218, do Código Civil de 2002.
Os efeitos processuais são: a faculdade de invocar os interditos possessórios, a possibilidade de ingresso de outras ações possessórias (ação de dano infecto, embargos de terceiro, ação de imissão de posse e ação publiciana), das faculdades de legítima defesa da posse e do desforço imediato.”
Perguntas frequentes
A posse não é apenas um conceito jurídico, mas sim, fatídico. Assim, a posse é o exercício de alguns dos direitos inerentes a propriedade, como o direito de uso, por exemplo.
A propriedade é um conceito jurídico caracterizado pela manifestão do direito real de usar, fruir, dispor e reivindicar de uma coisa, sem prejuízo a sua função social.
Conclusão
É impossível esgotar a temática envolvendo os efeitos da posse em apenas um antigo. Contudo, foi possível abordar pontos importantes, diferenciando posse e propriedade, trazendo jurisprudência e doutrina sobre o tema. Esperamos que esse conteúdo tenha sido útil. Até a próxima.
Texto de fácil compreensão.
Parabéns pela objetividade e pelos esclarecimentos oportunos.
À todos desejo muita paz, sabedoria e tranquilidade. excelente o trabalho espero receber ainda mais. O conhecimento deve ser expandido (divulgado), somos todos gratos.
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